O programa “Rumos” viabilizou o renascimento de um bumba-boi em uma comunidade quilombola no interior do Maranhão
Publicado em 22/03/2022
Atualizado às 18:24 de 22/03/2022
por Ana Luiza Aguiar
Quando pensamos em bumba meu boi, normalmente vem à mente aquela festa colorida típica do folclore das regiões Norte e Nordeste do Brasil, reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como patrimônio imaterial da humanidade em 2019. A riqueza dos bordados, a cantoria dos músicos e a irreverência do boi abarcam as diferentes matrizes culturais formadoras das identidades que compõem o Brasil. Mas essa festa é o ápice de um ritual que começa meses antes e tem uma forte ligação com as religiões de matriz africana. “Todo bumba-boi tem um encantado por trás”, explica a antropóloga e documentarista Juliana Loureiro, que estuda há quase 20 anos as tradições do Quilombo Santa Rosa dos Pretos, no interior do Maranhão. O encantado é um espírito que a mãe de santo recebe durante os festejos ligados ao bumba-boi.
Foi com a ajuda de Juliana que Dona Severina Silva, a Mãe Severina da Tenda Nossa Senhora dos Navegantes, que fica no quilombo, propôs ao Itaú Cultural (IC) a recriação do Bumba-Boi Canário de Ouro, pertencente à sua encantada Tereza Légua. Recriação porque o boi nasceu na década de 1990 e desfilou até 2006. Cada boi tem certo período de existência, com um número de ciclos (compostos de nascimento, batismo, vida e morte, sendo que cada etapa é marcada por um festejo) determinado pelo encantado. O Canário de Ouro havia completado alguns ciclos e, pela definição de Tereza Légua, teria outros – mas tinha sido “ferrado”, estava inativo. Dona Severina queria revivê-lo para que as novas gerações do quilombo pudessem vivenciar essa experiência. “Há toda uma geração de Santa Rosa que não brincou com o Canário de Ouro. Queremos resgatar essa história para que os filhos das crianças que brincaram com o boi no começo dos anos 2000 possam agora brincar ao lado de seus pais”, explica Juliana.
O projeto foi um dos aprovados pelo edital Rumos Itaú Cultural 2019-2020, o que possibilitou a recriação; o boi voltou a desfilar após 16 anos. Foram confeccionadas mais de 40 fantasias (índias, vaqueiros, Catirina, Pai Francisco e zabumbas) e foi bordado um novo couro para o boi. O Canário de Ouro sai do terreiro da Mãe Severina, que é uma mãe de santo do tambor de mina. Sua Tenda Nossa Senhora dos Navegantes tem mais de 35 anos. Começou em um quartinho, foi um pequeno salão de taipa e hoje é de alvenaria, com um salão grande para receber os dançantes. Sua tenda é um ponto de cultura de matriz africana. Além das giras de tambor de mina, as festas são animadas pelo tambor de crioula, capoeira, coco de roda, toadas de boi, terecô de caixa, samba e radiolas de reggae.
O Canário de Ouro é um bumba-boi de sotaque (estilos, formas e expressões) de orquestra, o que o diferencia da maioria dos bumba-boi do Maranhão, os quais se dividem em outros quatro sotaques além do de orquestra: o de matraca, o de zabumba, o da baixada e o da costa de mão. O sotaque de orquestra, típico da região do quilombo, é o único que utiliza instrumentos de sopro e corda.
A comunidade quilombola Santa Rosa dos Pretos (também conhecida como Santa Rosa do Barão) está localizada no município maranhense de Itapecuru-Mirim, a 100 quilômetros de São Luís. É uma das maiores da região e abriga quase 750 famílias. Ela tem como origem ex-escravizados sequestrados de Guiné-Bissau, que herdaram a terra por meio de testamento deixado pelo Barão de Santa Rosa em 1898. Até hoje, filhos, netos e todos os descendentes dos herdeiros continuam vivendo e produzindo nessas terras. Por suas características mais notáveis, como a coesão, a pluralidade e a qualidade de suas manifestações culturais, a comunidade é uma referência de modelo de quilombo.