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“Sismógrafo”: romance constrói uma cadeia de afetos clandestinos

Estreia de Leonardo Piana na literatura, o livro tem apoio do “Rumos Itaú Cultural” e deve chegar às livrarias até abril de 2022

Publicado em 14/02/2022

Atualizado às 16:29 de 15/02/2022

por Heloísa Iaconis


Um aparelho que detecta os movimentos do solo: eis a definição de sismógrafo – palavra que, só ela (sem artigo ou qualidade que a defina), forma o título do primeiro livro de Leonardo Piana. O romance conta a história de Eduardo a partir de duas temporalidades: presente (momento em que, adulto, o narrador retorna à sua terra natal – Andradas, no sul de Minas Gerais) e passado (época em que o protagonista se vê às voltas com a descoberta da sexualidade e o sentimento de inadequação). A cidade interiorana foi (e, de certo modo, continua sendo) o lugar onde Eduardo, na adolescência, vive um relacionamento com Tomás, menino um ano à sua frente no colégio, relação toda feita de maravilhamento e culpa. Entre eles e outras personagens, estabelece-se, então, “uma cadeia de afetos clandestinos, expressos por uma atenção rigorosa à coreografia dos gestos e ao código das feições”, como resume o autor. Tal qual um instrumento de medição, Sismógrafo (2022) capta a vibração do desejo de homens gays em um ambiente conservador.

Contemplado pelo Concurso Nacional de Literatura Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2019 (tendo recebido a honraria, de fato, em 2020), Leonardo prepara-se para colocar, enfim, a sua criação no mundo. Até abril deste ano (com data ainda em aberto devido à pandemia de covid-19), a obra chega aos leitores, publicada pela Macondo. Trata-se da etapa final de um trajeto que começou, para valer, com o apoio do Rumos Itaú Cultural. Selecionado na edição 2017-2018 do programa, o projeto pôde ter tempo para amadurecer (assim como amadurece, no decorrer das páginas, Eduardo), ganhar ritmo próprio. Em 2019, o escritor conversou com o site do Itaú Cultural (IC) – leia aqui a entrevista – e, agora, em novo bate-papo, reflete sobre as expectativas e angústias que envolvem a sua estreia na literatura.

Quando surgiu a ideia do livro?

Alguns meses antes de me inscrever no Rumos. Quando veio o edital, tinha um rascunho: havia alguns temas que queria abordar, mas o resto fui percebendo ao longo do processo. Sem o Rumos, o desenvolvimento e o resultado seriam diferentes – tudo mais demorado, com menos foco. Porém, escreveria esse livro de qualquer maneira.

Por falar em processo: você tem uma rotina de escrita? Se sim, ela foi afetada pela pandemia?

Não tenho uma rotina de escrita. Tenho, na verdade, uma rotina de leitura. Tento sempre separar algum período (de preferência, algumas horas) para ler. E, ao ler, escrevo também: faço anotações, acho palavras, pensamentos, imagens. A leitura, para mim, é também uma tarefa de escrita. Os momentos de escrita propriamente foram mudados pelo Rumos, pois tive tempo para me dedicar à elaboração da obra. Já na pandemia, uma vez que a primeira versão estava finalizada, fiquei concentrado em reescrever e revisar a narrativa. Reescrever equivale, talvez, ao principal trabalho de um escritor. A isso soma-se a incerteza da publicação em um cenário pandêmico, o que me gerou ansiedade e angústia. Eu me perguntava: “Será que colocarei esse livro no mundo?”.

Para você, o que é escrever?

Escrever é recalcular a rota constantemente. Ao enviar o projeto para o Itaú Cultural, tracei um caminho que gostaria que o romance seguisse, sabendo, contudo, que as chances de alcançar esse destino eram remotas. Imaginei que, com frequência, mudaria a rota. Conforme fui escrevendo, revisitando a minha memória e o lugar de onde vim (Andradas, para onde me mudei por alguns meses após a seleção no Rumos), passei a ter clareza sobre algumas questões, enquanto outras se tornaram mais obscuras. Tive de aprender a lidar com as dúvidas. No fim das contas, Sismógrafo respeita as lacunas referentes ao assunto central – a origem do desejo, a violência a ele associada, a busca para se livrar do olhar dos outros.

Leonardo Piana | foto: Lucas Saccon

Por que optou pelo gênero romanesco?

Porque escrevo muito mal poesia [risos]. Estou lendo Poeta chileno (2020), de Alejandro Zambra, artista que diz: os poetas escrevem só o essencial do que é um romance. Todo romance poderia ser um poema. A poesia, aliás, contaminou bastante a minha obra: ela alicerça a linguagem com que trabalhei, construindo uma homenagem aos poetas feita por alguém que não escreve poesia. No entanto, apesar dessa homenagem, escolhi o romance, entendendo-o como um gênero em que se pode tudo: há liberdade para experimentação, para pôr dúvidas em pauta e, simultaneamente, contar uma história. E eu precisava contar uma história.

Você compreende essa obra como autoficção?

Prefiro não falar em autoficção. Há pontos do enredo que coincidem com a minha vida. Mas acho que Eduardo é muito melhor do que eu. Ajudei-o a ganhar voz e sinto que ele me ajudou também. Fora isso, opto por manter a minha vida distante, separada da narrativa.

Além do desejo, Sismógrafo apresenta dois outros pilares: a memória e a culpa. Como você define a memória? E a culpa?

De imediato, respondo que a memória corresponde a uma oportunidade de ressignificar o passado e reconstruir um pouco o que a gente é. Agora, a culpa representa o olhar dos outros, que, muitas vezes, incide no nosso olhar sobre nós. O livro joga com o olhar alheio em relação ao desejo do narrador.

De que forma se deu o percurso para a publicação?

Conversei com Otávio Campos, editor da Macondo, em meados do ano passado. Depois de ler o romance, ele ficou empolgado com a publicação. Otávio acredita no meu trabalho (o que é importante para mim) e tem me dado energia. Planejamos o lançamento presencial em São Paulo e em Andradas, entre o final de março e o começo de abril (sem data definida ainda, em razão da pandemia), cumprindo todos os protocolos sanitários. Já tenho saudades de Eduardo, Tomás, Clara, desses personagens que vão para o mundo.

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