Batizada de Abdias do Nascimento, "tricicloteca" – mistura de triciclo com biblioteca – vai levar cultura e diversão para quatro bairros pobres da Zona Norte do Rio de Janeiro: Costa Barros, Anchieta, Pavuna e Guadalupe
Publicado em 08/01/2019
Atualizado às 17:28 de 08/08/2019
por André Bernardo
A palavra “tricicloteca” ainda não consta nos dicionários de língua portuguesa, mas é usada pelo filósofo Jocemir Moura dos Reis, de 44 anos, para designar seu mais novo projeto cultural: “uma biblioteca móvel sobre um triciclo pedalável”. Com ela, Jocemir pretende levar cultura e diversão para moradores de quatro bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro: Costa Barros, Anchieta, Pavuna e Guadalupe. O que esses bairros têm em comum? Fazem divisa com o Complexo do Chapadão, nome de um conjunto de 16 favelas e cerca de 30 mil habitantes. “O território é dos mais pobres da cidade do Rio e, segundo a Unesco, tem altos índices de evasão escolar, gravidez na adolescência e morte de jovens por envolvimento com o tráfico de drogas”, afirma.
O insight veio durante as comemorações de dez anos de outro projeto cultural idealizado por Jocemir: a biblioteca comunitária Paulo Freire, fundada em 2006. Hoje, o acervo conta com mais de 3.500 livros e um público estimado de 120 visitantes por mês – em sua maioria, alunos das quatro escolas públicas da região. “Quando fizemos aniversário, há dois anos, senti a necessidade de transpor os muros da biblioteca. Mas como eu faria isso? Foi aí que tive a ideia de criar a tricicloteca, ou seja, uma biblioteca sobre rodas”, relata. O nome já foi até escolhido: Abdias do Nascimento, em homenagem a um dos principais nomes da luta contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra do país, que morreu em 2011, aos 97 anos.
Um dos selecionados na edição 2017-2018 do programa Rumos Itaú Cultural, o projeto Tricicloteca Cultural Abdias do Nascimento prevê a fabricação da engenhoca e a aquisição de 300 novos livros. O objetivo é recrutar 28 jovens, com idade entre 15 e 25 anos e moradores das próprias comunidades, para atuar como monitores das atividades culturais. “Cada um dos quatro bairros contemplados corresponde a um ciclo de três meses”, explica o autor do projeto. Com a primeira parcela da verba, Jocemir mandou construir a geringonça sobre rodas e deu início ao périplo cultural, cujo término está previsto para setembro de 2019, com uma festa literária na biblioteca Paulo Freire, onde tudo começou.
Produtor cultural
Nascido em São João de Meriti, a 25 quilômetros da capital fluminense, Jocemir formou-se em filosofia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 2015. Mestrando em educação pela mesma instituição, dá aulas de filosofia e sociologia na Escola Municipal Max Fleiuss. Nas horas vagas, trabalha como produtor cultural. Entre outras iniciativas, criou a 1a Festa Literária do Complexo do Chapadão (Flicc), realizada em 2016, e as “geladeirotecas”, presentes em oito comunidades carentes da Zona Norte do Rio de Janeiro, como Maré, Turano e Borel. “A ideia é comprar geladeiras em ferros-velhos ou então usar os modelos que ganhamos de doação, mandar grafitá-las e, em seguida, abastecê-las de livros”, conta o filósofo.
Seu mais novo projeto cultural não vai promover “apenas” rodas de leitura e narração de histórias. Munido de projetor, telão e equipamento de som, vai realizar também desde sessões de cinema até oficinas de rap, pintura e fotografia. Serão cinco horas diárias de intervenção cultural, pela manhã ou à tarde. “Por causa do esforço físico, a tricicloteca não vai ficar circulando ininterruptamente por entre becos, ruas e vielas. A ideia é encontrar um lugar de grande acessibilidade popular, como uma praça, e ocupá-lo com arte, literatura e muitas brincadeiras”, avisa Jocemir. “Depois de um ano, se tudo der certo, o projeto tem o objetivo de se tornar autossustentável.” Aí, sim, a tricicloteca vai poder pedalar com suas próprias rodas.