Dez anos depois de sua morte, filho e amigos falam do legado do maior documentarista do cinema brasileiro
Publicado em 02/02/2024
Atualizado às 18:00 de 02/02/2024
por André Bernardo
Em dezembro de 2013, Jordana Berg foi convidada pela Academia Internacional de Cinema (AIC) para ministrar uma masterclass, em São Paulo (SP), sobre o cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014). Os dois trabalharam juntos por quase 20 anos: ela como montadora, ele como documentarista. No dia 2 de fevereiro, faltando cinco dias para o evento, Jordana propôs ao marido, o diretor e roteirista Sérgio Bloch, e ao filho, Julian, à época uma criança, que assistissem à palestra que ela tinha preparado. “Os pobres coitados, sem outra opção, aceitaram”, brinca.
Terminada a apresentação, o telefone tocou. Era Eduardo Escorel. A notícia que ele trazia não poderia ser pior: Coutinho tinha acabado de ser morto, a facadas, em seu apartamento na Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ). “Eu me vesti e saí correndo para a porta do prédio dele”, recorda Jordana. “Cheguei lá no momento em que eu menos gostaria de ter chegado. O corpo dele foi posto num carro funerário e levado. Não havia mais nada a fazer. Voltei para casa e minha vida nunca mais foi a mesma”, avalia.
Dez anos depois, a manhã daquele domingo, 2 de fevereiro de 2014, não sai da memória de quem conheceu ou trabalhou com Coutinho, como é o caso do documentarista João Moreira Salles. “Ao ouvir pelo telefone o que tinha acabado de acontecer, me veio imediatamente à cabeça: a partir de agora, existe um antes e um depois deste telefonema. Nunca mais me esqueci dessa consciência instantânea e claríssima de que aquele instante mudava quase tudo”, observa.
Pouco depois do enterro, João chamou Jordana para uma conversa. Na ocasião, Coutinho rodava um novo documentário, intitulado Palavra, com alunos do ensino médio da rede pública do Rio de Janeiro. Com sua morte, o filme estava inacabado. “O que vamos fazer?”, perguntou o produtor. Na mesma hora, Jordana lembrou-se de quando, nos primeiros filmes que fizeram juntos, Coutinho dizia: “Se eu morrer no meio da montagem, quero que esse filme permaneça inacabado”. Rebelde, Jordana rebatia: “Vou remontá-lo antes que você esfrie no caixão!”. No primeiro dia de montagem de Edifício Master (2002), Coutinho pediu: “Se eu morrer, termina ele para mim”. Sempre implicante, Jordana retrucou: “Vou deixá-lo inacabado!”.
Brincadeiras macabras à parte, Jordana decidiu finalizar o filme. “Era algo grande demais para ser mantido em segredo”, explica a montadora. Jordana e João assistiram ao material bruto, selecionaram as melhores entrevistas e, rebatizado de Últimas conversas, lançaram o “filme-homenagem” em abril de 2015, um ano e dois meses depois da morte de Coutinho.
Quanto à masterclass, Jordana não cancelou nem adiou o evento. Na sexta 7 de fevereiro de 2014, ela embarcou para São Paulo e, ainda sob o impacto da morte do amigo, ministrou a palestra. “Começava ali uma missão que segue comigo até hoje: falar do Coutinho e apresentá-lo às novas gerações. Quero que sua obra siga sendo vista e admirada”, afirma.
“Só acredito em Deus quando viajo de avião”
Jordana Berg estreou como montadora de Coutinho em 1995, quando gravaram o vídeo Seis histórias para o Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip). Em 1998, ela montou o documentário Santo forte (o primeiro de 12 longas-metragens em parceria com o diretor) e, no ano seguinte, ganhou o prêmio de Melhor Montagem no Festival de Brasília. “Certa vez, ele me ligou da Espanha. Tinha ido receber o Prêmio Goya. ‘Estou tão feliz que tenho medo que o avião caia’”, relata Jordana. “Noutra ocasião, perguntei a ele se era religioso, se acreditava em algo. ‘Só acredito em Deus quando viajo de avião.’ Ele se dizia um materialista mágico.”
Jordana Berg e João Moreira Salles são apenas dois dos muitos amigos que Coutinho fez nos sets da vida. A lista é longa e inclui, entre outros colaboradores fiéis, o diretor de fotografia Jacques Cheuiche, a técnica de som Valéria Ferro, a produtora Laura Liuzzi e o fotógrafo Zeca Guimarães. “Não sei dizer quantas vezes o fotografei, mas comigo ele nunca foi arredio. Talvez pela nossa amizade”, recorda Zeca, que fez still em dois filmes: Babilônia 2000 (2000) e As canções (2011). “Era um deleite a forma como ele se comunicava com os personagens: ‘Eles dizem as coisas que interessam porque tenho cara de padre!’”, lembra. Das incontáveis fotos que fez, aponta a de Coutinho sentado numa cadeira de balanço em Nova York, no ano de 1987, como a sua favorita. “Claro que fumando”, enfatiza o fotógrafo, bem-humorado.
“O som mais bonito que existe é a voz humana”
Laura Liuzzi trabalhou com Coutinho em seus três últimos filmes: Um dia na vida (2010), As canções e Últimas conversas. “No set, era como um adolescente em véspera de prova final: ansioso, angustiado e inseguro”, descreve a produtora. “Quando comecei a trabalhar com ele, ele já era o Coutinho de Cabra marcado para morrer [1964-1984], Edifício Master e Jogo de cena [2007], mas era como se toda a experiência anterior zerasse e ele chegasse às filmagens como um estreante. Fumava compulsivamente e comia pouco. Mas, depois do primeiro dia, ia pegando o ritmo”, diz.
Laura não é a única a descrever as crises de insegurança do diretor. Carlos Alberto Mattos e Jordana Berg relatam episódios semelhantes em Babilônia 2000 e Últimas conversas, respectivamente. Mattos conta que, na noite de 31 de dezembro de 1999, ele acompanhava as filmagens de Babilônia 2000 no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Enquanto as equipes percorriam a comunidade e captavam os depoimentos do filme, Coutinho, comandando a equipe principal, tinha surtos de pessimismo, achando que jamais sairia com um filme naquela noite. “Pude, então, presenciar a aflição com que lidava com a iminência do fracasso. Era ao mesmo tempo divertido e angustiante. Mas esse era, afinal, seu combustível paradoxal”, afirma o autor do livro Sete faces de Eduardo Coutinho e curador da exposição Ocupação Eduardo Coutinho (2019) , juntamente com equipe interna do Itaú Cultural (IC).
Em geral, os “surtos de pessimismo” duravam pouco. Nos bastidores de As canções, Coutinho logo passou do status de adolescente em véspera de prova para o de aluno que tirou nota máxima. Em pelo menos dois momentos, o diretor convocou a equipe técnica e pediu que todos cantassem. Numa ocasião, a cantora escolhida foi Wanderléa, a eterna “Ternurinha” da Jovem Guarda. Noutra, a música selecionada foi “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho (1911-1986). “Eu me lembro de ele ter comentado que, no set de As canções, foi muito feliz. Não estarei errada em dizer que todos que participamos tivemos uma semana muito feliz. No meu caso, a melhor dos meus 38 anos”, garante Laura.
A música “Ternura”, versão de Rossini Pinto para “Somehow it got to be tomorrow”, era uma das favoritas de Coutinho. Foi gravada por Wanderléa em 1965 e por Roberto Carlos em 1977. “Como ele era totalmente analfabeto digital, sempre que íamos para a ilha editar algum filme, Coutinho pedia que eu colocasse músicas no YouTube: qualquer uma do Tim Maia e muitas do Roberto, especialmente ‘Ternura’. Era a música que ele mais amava”, recorda Jordana. Amava tanto que a incluiu na trilha sonora de O pacto, episódio do longa ABC do amor (1966), e em Moscou (2009) e As canções.
“O som mais bonito que existe é a voz humana”, costumava repetir. “Coutinho gostava de cantar, mesmo sem saber, e de ouvir os outros cantarem”, conta Mattos no livro Sete faces de Eduardo Coutinho. A obra, publicada originalmente como Eduardo Coutinho – o homem que caiu na real (2003) e relançada como Sete faces de Eduardo Coutinho (2019), é uma das incontáveis homenagens que ele recebeu. No livro, o autor investiga as sete facetas de Coutinho: estudante, ficcionista, repórter, documentarista social, cineasta de conversa, experimental e personagem. Entre outras curiosidades, revela que, ainda garoto, Coutinho herdou de uma tia, Talina, o hábito de anotar em pequenos cadernos a ficha técnica dos filmes que via. Mais adiante, aos 24 anos, ganhou algo em torno de 2 mil dólares ao responder perguntas sobre Charles Chaplin (1889-1977) em um programa de televisão, O dobro ou nada, da Record. Com o dinheiro do prêmio, viajou para a Europa, onde permaneceu por três anos.
De volta ao Brasil, aos 37 anos, Coutinho conheceu a futura mulher, Maria das Dores de Oliveira, então com 19 anos. Bem, ninguém melhor do que Pedro, o primogênito do casal, para contar essa história: “Posso dizer que eu e meu irmão somos frutos do cinema. Foi nas filmagens de Faustão [1970], no agreste de Pernambuco, que meus pais se conheceram”, relata o hoje promotor de Justiça. “Minha mãe já havia saído de lá para morar no Recife, mas tinha ido visitar os pais e foi selecionada para fazer figuração no filme. Meus pais acabaram iniciando um namoro e, quando ele voltou ao Rio, mandou uma passagem de ônibus para ela. O que parecia uma loucura foi o começo da história da minha família.”
“Estava convencido de que, se parasse de fumar, assim como de filmar, morreria”
No último capítulo do livro sobre Coutinho, Mattos reúne “peculiaridades” do diretor. A primeira delas, como já adiantou Jordana, é a do analfabeto digital. “O máximo de tecnologia que ele adotava era uma máquina Olivetti Lettera 22, quando precisava escrever alguma coisa para olhos alheios”, diz um trecho da obra, acrescentando que ele tratava sua velha máquina de escrever portátil como se fosse um animal de estimação. Outra: a do tabagista compulsivo. O vício começou em Paris em 1958. Coutinho chegou a consumir de três a cinco maços de Marlboro por dia. “Estava convencido de que, se parasse de fumar, assim como de filmar, morreria”, explica o autor.
Mais uma: leitor voraz. Um de seus autores favoritos era o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), mas ele gostava também de ler Anton Tchekhov (1860-1904), Guimarães Rosa (1908-1967) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009). “Quando eu gosto de uma coisa, arranco a página”, contou na entrevista de quase seis horas que concedeu a Mattos no dia 27 de agosto de 2003.
“Há algo de divino e maravilhoso nos filmes do Coutinho”
Não faltam homenagens a Eduardo Coutinho. Só filmes, contabiliza Mattos, são oito. O mais recente é Banquete Coutinho (2019), de Josafá Veloso. “Coutinho não acreditava em Deus, mas tinha fé no encontro com os personagens. A conversa, para ele, era uma espécie de ‘exercício espiritual’, de conversão do olhar para se colocar no lugar do outro”, conta o diretor. E prossegue: “Há algo de divino e maravilhoso nos filmes do Coutinho. Algo que não vem dos céus, mas que brota da vida. Nos filmes dele, temos a chance de encontrar Deus. Não no sentido tradicional, mas no sentido de Espinosa. Ou seja, pelos olhos de Coutinho, junto com a narrativa fabulosa de seus personagens, acessamos certa ‘beatitude com o real’”, filosofa.
Além dos filmes, Coutinho ganhou, ainda em vida, outras homenagens: o Kikito de Cristal do Festival de Gramado pelo conjunto da obra; um convite da Academia de Hollywood para integrar a comissão responsável por eleger os ganhadores do Oscar; e uma participação especial na 11a edição da Festa literária internacional de Paraty (Flip) – à época, perguntou, gaiato, se FlipZona, a programação voltada para o público adolescente, era a zona de meretrício da cidade. Em 2019, foi tema da já citada exposição Ocupação Eduardo Coutinho, no IC. “Não é comum que nosso país se lembre assim de pessoas que contribuem para a cultura”, orgulha-se Pedro.
“Tenho certa dificuldade de entrar naquele apartamento. São muitas lembranças dolorosas”
Eduardo de Oliveira Coutinho nasceu no dia 11 de maio de 1933, em São Paulo, e morreu, 80 anos depois, no dia 2 de fevereiro de 2014, no Rio de Janeiro. Foi morto a facadas dentro de casa pelo próprio filho, Daniel, de 41 anos, durante um surto de esquizofrenia. A mulher, Maria das Dores, de 62, só escapou porque se trancou no banheiro. Foi de lá que, aterrorizada, ligou para o outro filho do casal, Pedro, um ano mais velho, que mora em Petrópolis, na região serrana do Rio. Segundo os vizinhos, Coutinho chegou a interfonar para o porteiro para pedir ajuda, mas Daniel atendeu à porta e disse que estava tudo bem. Depois de tentar matar os pais, ele ainda desferiu dois golpes de faca na barriga. Eram pouco mais de 11 horas da manhã.
“Minha mãe continua a morar nesse apartamento. Ela vem pouco a Petrópolis e, quando posso, eu a visito no Rio. Nós nos falamos mais ao telefone. Tenho certa dificuldade de entrar naquele apartamento. São muitas lembranças dolorosas”, afirma Pedro.
Coutinho foi sepultado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, e Daniel, que confessou o crime, foi preso em flagrante. Por ser portador de doença mental, foi considerado inimputável pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ). “Hoje, eu assumo as despesas da minha mãe e do meu irmão, que está internado em uma clínica psiquiátrica”, explica o primogênito.
“As pessoas que ele filmou são um espelho do que somos de melhor”
Ao longo de sua carreira, Eduardo Coutinho fez de tudo – de uma adaptação de Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado, ao roteiro de Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto. Na TV, trabalhou no Globo repórter, onde produziu seis programas, de 1976 a 1980. Mas foi como documentarista que escreveu seu nome na história do cinema nacional. “A cada novo filme, ele se arriscava mais do que no anterior”, destaca João Moreira Salles. “Nas palavras da pesquisadora Consuelo Lins, ele nos dá motivos para gostar do Brasil. As pessoas que ele filmou são um espelho do que somos de melhor”, arremata.
Na hora de apontar sua obra favorita, os cineastas têm dificuldade para escolher uma só. João Moreira Salles opta por O fim e o princípio (2005). “É o filme de um velho sobre velhos que falam da morte. Apesar disso, milagrosamente, o resultado não é um filme lúgubre e sombrio. Pelo contrário. É luminoso, quase feliz. Uma façanha e tanto”, elogia.
Josafá Veloso elege Boca de lixo (1992). “Bastaria Cabra marcado para ele entrar na história do cinema. Mas não. Ele fez mais, e mais, e mais... Boca de lixo nos lembra que a vida sempre re-existe. É sobre personagens que se alimentam de sobras de um lixão em São Gonçalo [RJ]. Uma delas canta um sertanejo para a câmera com uma potência rara. É lindo. Depois, observamos a comunidade vendo a si mesma em telas de TV improvisadas no lixão. Só assisto a esse filme com um lenço na mão”, confessa.
Coutinho na IC Play
Na Itaú Cultural Play, plataforma de streaming gratuita dedicada ao cinema brasileiro, estão disponíveis os filmes abaixo:
Cabra marcado para morrer (1984)
documentário | 120 minutos | classificação indicativa: 12 anos, segundo autodefinição
Um filme sobre João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé (Paraíba), assassinado em 1962, é iniciado, mas acaba interrompido pelo golpe civil-militar de 1964, e parte do material é apreendida. Quase 20 anos depois, realiza-se um novo encontro com a história da sua família e da luta camponesa, agora do ponto de vista da viúva Elizabeth Teixeira e dos seus filhos.
O fio da memória (1991)
documentário | 120 minutos | classificação indicativa: livre
É o segundo longa documental de Eduardo Coutinho, realizado depois de Cabra marcado para morrer (1984). O plano de abertura do filme, que capta as idas e vindas do mar numa pedra, é a porta de entrada para uma narrativa que trata dos movimentos da memória e da presença do passado no presente, tomando como matéria a escravatura e suas consequências perversas para o país.
Santo forte (1999)
documentário | 82 minutos | classificação indicativa: 12 anos, segundo autodefinição
Umbandistas, católicos e evangélicos moradores da comunidade Vila Parque da Cidade, na Zona Sul do Rio de Janeiro, narram suas histórias pessoais e falam sobre sua relação com o sobrenatural. Do colorido de crenças, orações, santos e orixás nasce um retrato da forma particular com que cada um lida com a religião.
Edifício Master (2002)
documentário | 110 minutos | classificação indicativa: livre, segundo autodefinição
Coutinho produz um retrato grandioso da riqueza humana deste espaço monumental, o Edifício Master, pleno de contradições, dramas e boas histórias. Um dos mais importantes documentários brasileiros do século, foi premiado nos festivais de Gramado e de Havana e na Mostra internacional de cinema de São Paulo.
Peões (2004)
documentário | 85 minutos | classificação indicativa: livre, segundo autodefinição
A história de homens e mulheres que migraram do campo para o ABC Paulista entre as décadas de 1960 e 1980 para trabalhar na indústria automobilística. Suas jornadas pessoais são recontadas a partir de um olhar atento aos grandes acontecimentos históricos do período, como o movimento sindicalista, a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e a projeção política de Luiz Inácio Lula da Silva.
Jogo de cena (2007)
documentário | 105 minutos | classificação indicativa: livre
Um documentário “impuro” que incorpora deliberadamente a contribuição de várias atrizes, entre elas Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra. Muito mais do que um mero exercício de linguagem ou um truque de embaralhar, o filme é uma profunda meditação sobre a encenação e a realidade, a condição feminina e a noção de verdade.