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Hilda Hilst: santa ou pecadora?

Quem foi a autora que, incompreendida pelos críticos, distante dos leitores e ignorada pelos editores, morreu há exatos 20 anos; especialistas debatem

Publicado em 04/02/2024

Atualizado às 11:03 de 05/02/2024

por André Bernardo

Ainda hoje, a jornalista e escritora Carla Mühlhaus não se recuperou do espanto que sentiu, aos 15 anos, ao ler uma entrevista de Hilda Hilst na revista Marie Claire. “Era como se ela fosse de outro planeta”, recorda. Anos depois, veio a descobrir que realmente era. O tal planeta, no caso, era Marduk. Um corpo celeste imaginário onde morariam figuras ilustres da literatura, como o escritor francês Júlio Verne, e da ciência, caso do físico alemão Albert Einstein. “Hilda, que acreditava em vida após a morte, costumava dizer que iria para lá depois que morresse”, acrescenta. “Não sei se há vida após a morte. O que sei é que, até hoje, quando releio seus livros, sinto a mesma presença. É como alguém que me diz coisas muito duras segurando minhas mãos. Sua literatura é um soco no estômago, mas ela está sempre ao meu lado para amparar, de alguma forma, o sofrimento”. 

A ideia de escrever Nos vemos em Marduk (Patuá, 2018) surgiu em 2016 durante uma visita de Carla Mühlhaus à Casa do Sol, em Campinas (SP), a 100 quilômetros da capital, onde Hilda morou de 1966 a 2004, ano de sua morte. “Quando eu soube que Marianna Teixeira Soares, minha agente, ia cuidar da obra de Hilda, liguei imediatamente para ela, eufórica, dando os parabéns e contando que era fã da Hilda desde que me conhecia por gente. Então, combinamos de ir juntas”, relata. No caminho, as duas conversaram sobre a urgência de se fazer uma bela biografia de Hilda Hilst. Marianna chegou a cogitar a ideia de Carla ser a pessoa ideal para abraçar esse projeto, mas a jornalista e escritora admite que não teria essa coragem. “Sou apaixonada demais por ela e sucumbiria com tamanha responsabilidade”, acredita. “Vai que ela não gosta do que escrevo e vem puxar meu pé à noite?”. 

Em vez de uma biografia sobre Hilda Hilst, Carla Mühlhaus escreveu uma novela sobre uma escritora que surta com a pressão de escrever a biografia da autora que tanto influenciou sua vida. Transtornada, a personagem sai de casa e se muda para a Casa do Sol. “Escrevi, na verdade, a minha própria história de adoração”, admite. A vida de Hilda de Almeida Prado Hilst poderia ser dividida em antes e depois da Casa do Sol. Ela se mudou para lá em 1966 depois de ler Relatório ao Greco (Cassará, 2014), o último livro do escritor grego Nikos Kazantzákis (1883-1957), publicado em 1961. A casa, inspirada na arquitetura de um mosteiro carmelita, foi construída nas terras da antiga Fazenda São José, que pertencia à mãe de Hilda, Bedecilda Vaz Cardoso. “A Casa do Sol é a própria obra da Hilda refletida em tijolo. Não tem como um lugar desses não ser mágico”, afirma Mühlaus. Dois anos depois de se mudar para a Casa do Sol, Hilda comprou outra casa, de praia, em Massaguaçu (SP). A essa, deu o nome de Casa da Lua.

Hilda está diante de um portão. Pelas grades, vê-se uma casa no fundo. A escritora está sentada e usa um lenço branco na cabeça.
Hilda Hilst à frente do antigo portão de ferro da Casa do Sol (imagem: Instituto Hilda Hilst)

“Adoráveis bandalheiras”

A entrevista que mudou a vida de Carla Mühlhaus foi apenas uma das dezenas que Hilda concedeu. Vinte delas, feitas entre 1952 e 2002, foram reunidas por Cristiano Diniz no livro Fico besta quando me entendem (Biblioteca Azul, 2013). “O que mais me motiva na literatura de Hilda é o quanto ela exige do leitor. Em algumas entrevistas, Hilda repete que não escrevia livros para serem lidos no ônibus ou antes de dormir. De fato, não dá para ler sua obra de qualquer jeito, lugar ou momento. É preciso de uma espécie de preparação”, avisa o pesquisador. Doutorando em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Diniz aponta que sua entrevista favorita mudou com o passar dos anos. Atualmente, a que mais o atrai foi realizada por Sônia Mascaro para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1986. “Ali, percebo uma Hilda mais leve e à vontade”, justifica. 

Vinte anos depois de sua morte, no dia 4 de fevereiro de 2004, como Cristiano Diniz explicaria para as novas gerações quem foi Hilda Hilst? Ele começaria dizendo que Hilda dedicou boa parte de sua vida à literatura. Chegou a trocar a vida boêmia de socialite em São Paulo por outra, quase monástica, em uma chácara em Campinas. “Hilda produziu em diferentes gêneros: poesia, dramaturgia, prosa de ficção e crônicas. No entanto, só entrou no catálogo de uma grande editora nos anos finais de sua vida. Ou seja, na maior parte de sua vida literária, ficou circunscrita a poucos leitores, o que lhe causava um grande incômodo”, detalha. Em 1989, Hilda levou um susto ao ler que a escritora francesa Régine Deforges ganhou 10 milhões de dólares ao vender os direitos de A bicicleta azul. Foi quando resolveu dar uma guinada em sua carreira e, dali por diante, só publicar “adoráveis bandalheiras”. 

“Nos anos 1990, Hilda chamou a atenção do mercado editorial com sua produção conhecida como pornográfica”, prossegue Diniz. “Foi o período em que foi mais procurada pela imprensa e que consolidou a imagem de polêmica e incompreendida”. O livro que inaugurou sua fase obscena foi O caderno rosa de Lori Lamby (Companhia das Letras, 2021). A narradora é uma menina de oito anos que, com o consentimento dos pais, resolve se prostituir e registrar tudo em seu diário – o tal caderno rosa do título. Terminado o livro, Hilda mandou os originais para Caio Graco Prado, o editor da Brasiliense, que tinha publicado Com os meus olhos de cão, em 1986. Dessa vez, porém, ele rejeitou o manuscrito. “Escabroso”, alegou o editor. Até mesmo amigos de longa data, como a escritora Lygia Fagundes Telles, que Hilda conheceu em 1949 na antiga sala de chá da Loja Mappin, por ocasião do lançamento de O cacto vermelho, criticaram o livro. “Você cometeu uma agressão contra si mesma!”, disse Lygia. 

Com a recusa de Caio Graco Prado, Massao Ohno (1936-2010) se ofereceu para publicar o livro. Não foi a primeira vez. Ohno editou 11 dos 33 títulos de Hilda Hilst – o primeiro deles, Trovas de muito amor para um amado senhor, em 1961, e o último, Do amor, em 1999. A primeira parceria teve tiragem de 500 exemplares e ilustrações de Cyro Del Nero. O caderno rosa de Lori Lamby, de 1990, foi ilustrado por Millôr Fernandes. No volume número 8 do Cadernos de Literatura Brasileira, publicado pelo Instituto Moreira Salles (IMS) em outubro de 1999, o editor recorda que conheceu Hilda entre o finalzinho de 1959 e o comecinho de 1960. “Era deslumbrante. Uma beleza de Ingrid Bergman acrescida da sensualidade de Rita Hayworth”, descreve. “A mais bela entre as mais cortejadas mulheres de São Paulo. Além de bacharel em Direito, lia muito, era culta e, ainda por cima, escrevia bem”. 

Além da imaginação

Essa mulher “deslumbrante” namorou, entre outros, o ator e cantor norte-americano Dean Martin (1917-1995). É o que revela o livro Eu e não outra – A vida intensa de Hilda Hilst (Tordesilhas, 2018), escrito por Laura Folgueira e Luisa Destri. O affair teria ocorrido em Paris, em 1957. Na mesma ocasião, Hilda teria dado em cima de Marlon Brando (1924-2004), colega de set de Dean Martin no filme Os deuses vencidos. Certa manhã, depois de subornar o recepcionista do Hotel Raphael, Hilda subiu até a suíte de Brando com o pretexto de entrevistá-lo. “Você pensa que só porque é bonita pode acordar um homem a uma hora dessas?”, indagou o hóspede, dentro de um robe de seda. “O que o senhor pensa sobre Franz Kafka?”, arriscou Hilda. “Vou dormir agora”, respondeu, já fechando a porta. “Não posso entrar nem um pouquinho?”, insistiu. “Você é uma menina mimada”, e deu a conversa por encerrada. 

Hilda está diante de prateleiras com vários recipientes. Segura um pote na mão, do qual retira algo. Olha para a foto e sorri.
Hilda Hilst na despensa da Casa do Sol, em Campinas (imagem: Instituto Hilda Hilst)

 

Publicado por ocasião da 16ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), dedicada a Hilda Hilst, Eu e não outra não é (ainda) a tão esperada biografia da autora. Folgueira e Destri preferem chamá-lo de “coleção de episódios”. Para escrevê-lo, as duas pesquisaram dezenas de jornais e revistas; visitaram tanto a Casa do Sol quanto o Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e entrevistaram mais de 40 fontes, como o escultor Dante Casarini, ex-marido de Hilda; o escritor Mora Fuentes (1951-2009), um de seus melhores amigos; e o editor Massao Ohno. “A parte mais prazerosa da pesquisa foi mergulhar em seus escritos. Hilda anotava de tudo – das despesas de casa à vida amorosa – em cadernos, cadernetas e agendas. Infelizmente, não cheguei a conhecê-la pessoalmente. Pesquisar seus escritos foi o mais perto que consegui chegar dela”, afirma a pesquisadora Luisa Destri. 

Dos incontáveis “episódios” de Eu e não outra, pelo menos três são sobrenaturais. Em um deles, Hilda diz ter avistado, a 15 metros do chão, um disco luminoso. O avistamento do objeto voador não identificado (OVNI) teria acontecido em agosto de 1966 ou 1967. Noutro, recebeu a visita misteriosa de um homem de chapéu que, depois de entrar pela porta principal da Casa do Sol, colocou sua maleta no chão e, em seguida, suspirou: “Enfim, cheguei!”. Quando Hilda levantou-se para cumprimentá-lo, o sujeito desapareceu. A aparição foi vista, também, pela artista plástica Gisela Magalhães. Num terceiro, em uma noite de dezembro de 1966, a escritora jura ter avistado, numa velocidade semelhante à de um avião a jato, as estrelas que compõem o Cruzeiro do Sul trocarem de lugar entre si. Neste dia, Hilda não estava sozinha em casa. Mora Fuentes também teria testemunhado o estranho fenômeno. 

“Vocês mortos, vivem?”

Ao longo dos anos, Hilda recebeu incontáveis visitas na Casa do Sol. Uma delas foi a do jornalista e escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996). Em 1968, então com 19 anos, ele tinha acabado de concluir o Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, e disputava uma vaga de repórter na equipe da revista Veja, em São Paulo. Se, hoje, a figueira que enfeita os jardins da propriedade tem fama de mágica, isso se deve, em boa parte, a ele. Quando morou lá, entre 1968 e 1969, Caio Fernando Abreu fez três desejos debaixo de sua copa e jura que todos foram atendidos. Um belo dia, ele e Hilda fizeram um estranho pacto: quem morresse primeiro, avisaria o outro. No dia 26 de fevereiro de 1996, quando Caio Fernando Abreu morreu, em decorrência do HIV/Aids, Hilda diz tê-lo visto passeando com um cachecol vermelho pelos jardins da Casa do Sol. 

Diante de uma área arborizada, uma mulher, vista de costas, ergue um microfone para o alto.
Cena do documentário Hilda Hilst pede contato (imagem: Frame do filme)

Quem também visitou a casa, a convite de Mora Fuentes e Olga Bilenky, foi Gabriela Greeb, em 2008. Ao entrar no quarto de Hilda, a cineasta se deparou com uma caixa de papelão, contendo rolos, fitas e cassetes. “O que é isso?”, perguntou. “Nada de importante”, desconversaram os anfitriões. “O que tem gravado nelas?”, insistiu. Houve uma época, explicaram, em que Hilda tentou fazer contato com os mortos, através das ondas do rádio. “Kafka, você está me ouvindo?”, perguntou a escritora numa das fitas. “Durante a pesquisa da locação, visitei o túmulo de Hilda num cemitério em Campinas”, recorda a diretora do doc Hilda Hilst pede contato, de 2018. “Chegamos na lápide: era uma pedra deitada na grama, com seu nome esculpido. Sentamos, mas logo começou a chover. Decidimos ir embora, mas, ao nos afastar, notamos que não estava chovendo. Chovia somente sobre a lápide da Hilda. Muito estranho”. 

Medo da loucura

Hilda Hilst nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930. Era filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso. Por uma trágica coincidência, os dois terminaram seus dias no mesmo sanatório: a Casa de Saúde Bierrenbach, em Campinas. O pai, com diagnóstico de esquizofrenia, morreu em 1966, e a mãe, quatro anos depois. “Sempre tive muito medo de ficar louca”, confessou Hilda na entrevista concedida ao Cadernos de Literatura Brasileira, de 1999. “Na minha vida inteira, meu grande temor foi esse”. Quando criança, Hilda estudou no Colégio Santa Marcelina, em São Paulo. Nesta época, se alguém lhe perguntasse o que gostaria de ser quando crescesse, responderia sem titubear: santa. Sua favorita, aliás, era a francesa Teresinha de Lisieux. “Estudava em colégio de freiras, rezava demais, vivia na capela. Sabia de cor a vida das santas”, justifica. 

Já adulta, Hilda estreou na poesia em 1950, com Presságio, e na prosa em 1970, com Fluxo-floema. Escreveu ainda oito peças teatrais, de 1967 a 1969, e publicou crônicas no Correio Popular, de Campinas, de 1992 a 1995. “Como eu falava tudo o que pensava, as pessoas mandavam cartas medonhas para o jornal”, recorda a cronista. “Telefonei para o jornal perguntando se eles queriam que eu saísse: ‘Não, pelo amor de Deus! O Correio está vendendo muito só por causa do que você escreve’”. Em 1998, as crônicas dominicais publicadas no jornal foram reunidas no livro Cascos & carícias (Nova Fronteira, 2018). Seu último livro foi Estar sendo, ter sido, de 1997. Depois, não escreveu mais. “Acho que fiz um trabalho deslumbrante. Se entendem ou não, se leram ou não, não tenho nada a ver com isso”, deu de ombros na entrevista ao IMS. 

A imagem é preta e branca. Os três olham para a foto e usam roupas brancas. Olga está à esquerda, Hilda no centro e Daniel à direita.
A escritora Hilda Hilst tendo, ao seu lado, Olga Bilenky e Daniel Fuentes (imagem: Acervo pessoal de Daniel Fuentes)

Hilda Hilst morreu no dia 4 de fevereiro de 2004, depois de sofrer uma série de reveses, como um derrame cerebral em 1996, um câncer no pulmão em 2002 – fumava cerca de três maços por dia – e uma insuficiência urinária em 2003. Em 2015, foi homenageada na Ocupação Hilda Hilst, do Itaú Cultural. Hoje, a Casa do Sol abriga o Instituto Hilda Hilst (IHH). “A literatura da Hilda era densa e profunda; mas ela era leve e divertida. Quando eu ia visitá-la, ela virava criança: a gente brincava de ‘guerra de meleca’”, recorda Daniel Fuentes, o presidente do IHH e administrador dos seus direitos autorais. Entre outros projetos, Fuentes anuncia a produção de uma biografia e a atriz Tainá Müller, a filmagem de sua cinebiografia. Nenhum dos dois, porém, tem previsão de lançamento. De certo mesmo, só o restauro da Casa do Sol, já em andamento. “Não sei bem se Hilda é algo que se explica, sabe? Tenho a sensação de que, talvez, nem ela quisesse ser ‘explicada’”, arrisca a tradutora Laura Folgueira, de Eu e não outra. “A melhor forma de entender Hilda é lendo Hilda. É experimentar sua prosa, sua poesia, seu teatro: ali está o que ela acreditava ser o mais importante. Hilda Hilst foi, acima de tudo, uma mulher devotada à sua literatura”. 

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