Para comemorar oito décadas de vida, jornalista lança romance epistolar e estreia musical sobre Tom Jobim
Publicado em 29/10/2024
Atualizado às 16:02 de 29/10/2024
por André Bernardo
Foi para tocar músicas como “Rosa Morena” e “Doralice”, ambas do repertório de Dorival Caymmi (1914-2008), que Nelson Motta começou a estudar violão. Só assim o rapaz que se achava feioso, dentuço e magricelo teria alguma chance com as garotas. À época, todos os seus amigos – Wanda Sá, Edu Lobo, Marcos Valle, Dori Caymmi e Francis Hime – tinham aulas na rua Dias da Rocha, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas, o amor de Nelsinho pelo instrumento musical não era correspondido. Quem garante é o seu professor de violão, o músico Roberto Menescal. “Era muito esforçado. Mas não levava jeito. Apanhava muito do violão”, avalia o coautor de clássicos da Bossa Nova, como “O Barquinho”, parceria com Ronaldo Bôscoli (1928-1994).
Em De Cu pra Lua – Dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte (Estação Brasil, 2020), Nelson Motta é o primeiro a apontar, em terceira pessoa, alguns de seus pontos fracos: “desafinado”, “sem noção de ritmo” e “ruim de ouvido”. Apesar dos pesares, chegou a gravar um disco, lançado em 1964 pela gravadora RGE, com o grupo Os Seis em Ponto, liderado por Francis Hime. Como não havia letristas na turma, Nelsinho, então com 20 anos, começou a arriscar os primeiros versos. “Era o jeito de continuar na música sem ser músico”, explica.
A primeira canção gravada foi “Encontro”. Entrou no álbum de estreia de Wanda Sá, Wanda Vagamente (1964), da RGE. “Nelsinho escreve como quem fala. Coisa rara que só os grandes poetas sabem fazer. É simples, porém sofisticado”, elogia a cantora. Com Dori Caymmi, compôs “Saveiros” e “O Cantador”. A primeira, interpretada por Nana Caymmi, ficou em primeiro lugar no I Festival Internacional da Canção Popular, em 1966. A segunda, na voz de Elis Regina (1945-1982), participou do III Festival de Música Popular Brasileira, em 1967. Não ganhou o festival – a vencedora foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam. Elis, porém, levou o prêmio de melhor intérprete.
“Não existiria som / se não houvesse o silêncio…”
Segundo levantamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), Nelson Motta é autor de 214 músicas. Dessas, a mais tocada é “Dancin’ Days”, composta com Rubens de Queiroz Barra, o Ruban, e gravada pelo conjunto As Frenéticas em 1978. E a mais regravada, “Como Uma Onda”, parceria com Lulu Santos. A canção, de 1983, já foi gravada, entre outros artistas, por Tim Maia (1942-1998), Renato Russo (1960-1996), Roberto Carlos, Caetano Veloso e Leila Pinheiro. “O maior prêmio que um compositor pode ganhar é ver um estádio inteiro cantando uma música sua”, emociona-se.
Das antigas, Nelson Motta destaca “Certas Coisas”, mais uma do repertório de Lulu Santos, como a sua predileta. Das mais recentes, aponta duas: “Noturno Carioca”, parceria com Erasmo Carlos (1941-2022), e “A vida é agora”, a mais nova parceria com a cantora italiana Chiara Civello. “Se tem algo que detesto é nostalgia! Você nunca vai me ouvir dizer: ‘No meu tempo…’. Isso não existe! Meu tempo é agora”, declara.
Há canções que, muitas vezes, o público nem sabe que é de Nelson Motta. Um exemplo? “Um Novo Tempo”, jingle de fim de ano da TV Globo desde 1971. É uma parceria com os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. “Hoje é um novo dia / de um novo tempo / que começou…”, diz a primeira estrofe. Outro? “Cinto de Inutilidades”, tema de abertura do Globo Cor Especial, programa infantil de desenhos animados, de 1973. “Não existe nada mais antigo / do que cowboy que dá cem tiros de uma vez…”, diz a letra. “Só eu mesmo para chamar o Batman de Morcego Velho”, brinca. Mais um? “Bem Que Se Quis”, letra de Nelson Motta para música do cantor italiano Pino Daniele (1955-2015). Entrou no álbum de estreia de Marisa Monte: MM (1989).
Nenhum outro cantor, porém, gravou tantas músicas de Nelson Motta quanto Lulu Santos. “Como Uma Onda”, composta para o filme Garota Dourada, de 1984, é a mais conhecida. Mas, há outras: “Certas Coisas”, “Tudo Azul”, “De Repente Califórnia”... São tantas que, em 2016, a dupla resolveu reuni-las num CD, Lulu & Nelsinho. “Se não me engano, conheci o Nelsinho pela TV, apresentando o Sábado Som”, recorda Lulu, referindo-se a um programa de rock internacional da TV Globo, exibido entre 1974 e 1975. “Uma ocasião, Nelsinho chegou na minha casa, pedindo um gravador e, também, para ficar a sós no living do apartamento. Providenciados os dois requisitos, trancou-se na sala e, no cassete, cantou uma música já com melodia e letra; só tive o trabalho de harmonizar. A canção se chama ‘Eu Não’. Gosto tanto que já gravei duas vezes”.
“Abra suas asas / solte suas feras…”
Ao longo de sua carreira musical, Nelson Motta fez de tudo: produziu discos, lançou artistas, dirigiu shows. Até organizar um festival de rock em plena ditadura militar, ele organizou. Trata-se da primeira edição (não oficial) do Hollywood Rock, em 1975. Realizado no Estádio do Botafogo, no Rio de Janeiro, reuniu só artistas nacionais, como Celly Campello (1942-2003), Raul Seixas (1945-1989) e Rita Lee (1947-2023). “A parte fácil foi negociar com os artistas. A difícil foi aturar os milicos. Tinha que apresentar com antecedência o set list de todos os shows. Foi o maior perrengue da minha vida!”, define. Ao todo, o Hollywood Rock teve sete edições oficiais: de 1988 a 1996.
Na coluna que escreve toda sexta-feira para o jornal O Globo, Nelson Motta é apresentado ao leitor como jornalista, compositor, escritor, roteirista e produtor. Sua mais recente atividade é DJ. No dia 23 de novembro, Nelsinho é o disc-jóquei convidado da festa Gudinaite, idealizada por Patrícia Parenza e Diego de Godoy a partir das discotecas dos anos 1970. “Do que eu mais me orgulho de ter feito? Ora, das minhas filhas, é claro! São a minha melhor produção”, derrete-se o pai coruja de Joana, Esperança e Nina. Joana é filha do primeiro casamento, com a jornalista Mônica Silveira, e Esperança e Nina, do segundo, com a atriz Marília Pêra (1943-2015).
Volta e meia, ainda sobra tempo para escrever musicais. “Estou mais produtivo do que nunca”, orgulha-se. “O HD está mais cheio, mas o processador está mais rápido”, compara, aos risos. Só com Patrícia Andrade, Nelson Motta assinou três: Elis – A Musical (2013), S’imbora, O Musical – A História de Wilson Simonal (2015) e O Frenético Dancin’ Days (2018). “Nelsinho é um excelente dialoguista, tem humor refinado e trabalha com imenso prazer. Com ele, não tem tempo ruim”, elogia a roteirista. “O defeito é que, como ele é jornalista, às vezes, resiste a embarcar na ficção. Ele próprio costuma dizer que, em determinados trabalhos, corre o risco de fazer um Globo Repórter”.
Ao lado de George Moura, Patrícia Andrade é uma das roteiristas de O Canto da Sereia, minissérie em quatro episódios, adaptada do romance homônimo, de 2002. Juntos, Nelson e Patrícia escreveram também o roteiro de um longa sobre a vida de Roberto Carlos. Sem previsão de estreia, seria dirigido por Breno Silveira (1964-2022). “Um filme tem só 90 minutos e a vida do Roberto daria uma série de dez episódios”, brinca o roteirista.
“Bem que se quis / depois de tudo ainda ser feliz…”
Prestes a completar 80 anos, Nelson Motta acaba de estrear mais um espetáculo: Tom Jobim Musical, escrito com Pedro Brício e dirigido por João Fonseca. Tom Jobim (1927-1994) é interpretado por Elton Towersey e Vinicius de Moraes (1913-1980), parceiro em obras-primas como “Chega de Saudade”, “Eu Sei que Vou Te Amar” e “Garota de Ipanema”, por Otávio Muller. “Tive dois problemas para resolver. O primeiro deles é selecionar só 25 músicas em duas horas e meia de espetáculo. É uma doce tortura, né?”, diverte-se. “O outro? A vida do Tom não tem drama, conflito ou suspense. Para compensar, juntei a vida dele com a do Vinícius. É a dupla perfeita”.
Outro projeto que faz parte das comemorações dos 80 anos é Corações de Papel (Record, 2024). O livro reúne 38 cartas de amor que Nelson Motta, então com 20 anos, escreveu para uma antiga namorada da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), a Maria Lúcia. Na época, ele namorava uma, mas estava noivo de outra, a Gabi. Não podia ter dado certo mesmo. “Nossa, 60 anos depois, aquele Nelson Motta parece até outra pessoa, sabe? Parece que estou espionando a vida dele”, diverte-se. “Ao todo, escrevi mais de 100 cartas. Cortei umas, editei outras. Procurei dar uma melhorada nas que entraram no livro para tornar a leitura mais agradável”, explica o escritor.
Uma curiosidade: Zuenir Ventura foi um dos professores de Nelson Motta na ESDI. Dava aula de Comunicação Verbal. “Quando quero contar vantagem, lembro que Nelsinho foi meu aluno – se não o melhor, certamente um dos melhores de todos os tempos da escola”, escreveu Zuenir na orelha da autobiografia De Cu Pra Lua. “Um detalhe: tudo o que ele sabe não aprendeu comigo, aprendeu com ele mesmo – com quem, aliás, aprendo até hoje”.
“Todos os nossos sonhos / serão verdade / o futuro já começou…”
Corações de Papel é o 15º livro de Nelson Motta. Desses, seu favorito é o romance Ao Som do Mar e à Luz do Céu Profundo, de 2006. “Ia lançar uma coletânea de poesia, o Sexo Oral, mas desisti por dois motivos: excesso de exposição e falta de qualidade”, confessa. Já o mais vendido é Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia, de 2014. São mais de 250 mil exemplares. A biografia de Sebastião Rodrigues Maia, o Tim Maia (1942-1998), já virou musical de João Fonseca e filme de Mauro Lima. No palco, o protagonista foi interpretado por Tiago Abravanel e, no cinema, revezado entre Robson Nunes e Babu Santana. “Joãosinho Trinta (1933-2011) também merece uma biografia. Mas, escrever biografia dá um trabalho danado. Sozinho, não me atrevo a escrever outra não”, confessa.
Em 2016, Nelson Motta levou um susto daqueles. Por causa de uma fístula medular, precisou ser operado às pressas. Suas pernas, lembra, pareciam geleia. “Seu pai tem 50% de chances de não voltar a andar”, preveniu o neurocirurgião Paulo Niemeyer para suas filhas. Depois de 17 dias no hospital, recebeu alta e continuou as sessões de fisioterapia em casa. “A recuperação foi lenta e dolorosa”, recorda. À época, ganhou um apelido de Esperança: “The Walking Daddy” – uma brincadeira com o título da série sobre zumbis, The Walking Dead.
Por essas e outras, quando indagado sobre o próximo sonho a realizar, não hesita em responder: “Acordar lúcido. O resto é lucro!”. Mas, se alguém quiser fazer campanha para ele ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), não vai se importar. “Só tenho bróder lá dentro: Gilberto Gil, Cacá Diegues, Geraldinho Carneiro…”, lista. “Mas, como meu avô, Cândido Motta Filho (1897-1977), foi da ABL, podem achar que é nepotismo”, brinca.