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Paulo Leminski: o mais “pop” dos poetas brasileiros

No mês em que completaria 80 anos, escritor paranaense é revisitado em festival em Curitiba e exposição em São Paulo

Publicado em 24/08/2024

Atualizado às 15:22 de 23/08/2024

por André Bernardo

No começo dos anos 1980, o cantor e compositor Guilherme Arantes foi convidado pelo diretor Augusto César Vanucci (1934-1992) e pelo produtor Guto Graça Mello para assinar a trilha sonora de Pirlimpimpim 2 (1984). Autor de “Lindo balão azul”, clássico infantil eternizado nas vozes de Moraes Moreira (1947-2020), Baby Consuelo, Bebel Gilberto e Ricardo Graça Mello, o músico preferiu procurar um parceiro a compor sozinho as dez canções do álbum. Por sugestão de Paulinho Boca de Cantor, um dos fundadores do grupo Novos Baianos, convidou o poeta Paulo Leminski. Juntos, os dois compuseram nove músicas: “Xixi nas estrelas” chegou a tocar nas rádios. “Tomamos vinhos maravilhosos e tivemos papos delirantes”, recorda Guilherme. “Era um poeta magnífico, de ‘tiradas’ engraçadas e frases sensacionais. Tenho muito orgulho do que fizemos juntos.”

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No verão de 1980, em Salvador (BA), Paulinho Boca de Cantor conheceu Leminski. À época, estava selecionando repertório para seu próximo disco. Certo dia, bateu à sua porta, no bairro Boca do Rio, na capital baiana, Leminski, a mulher, Alice, e a primeira filha do casal, Áurea. “Logo me conquistou com seu jeito falante de ser”, lembra o cantor e compositor. “Pegou o violão e começou a tocar umas músicas. Quando ouvi ‘Valeu’, perguntei: ‘Posso gravar essa?’. Respondeu que sim. Gostei de todas, mas ‘Valeu’ bateu forte no coração. Fez o maior sucesso.” Paulinho Boca de Cantor não só gravou a música como batizou seu segundo álbum solo, de 1981, com o título dela. Do poeta, gravou outras, como “Se houver céu”, uma das prediletas de Leminski. Os dois compuseram também “Quanto mais quente melhor”, em parceria com Chico Evangelista (1952-2017).

Foto antiga na cor sépia mostra menino sentado em cima de uma mesa. Ele tem dois anos e usa camisa de botão de manga comprida e shorts. Seus sapatos são brancos e fechados, assim como as meias, também brancas e na altura dos joelhos. Seus cabelos são lisos e ele tem uma franja curta.
Paulo Leminski, aos 2 anos de idade (imagem: acervo da família Leminski)

 

Paulinho Boca de Cantor é um dos convidados do Festival Paulo Leminski, que acontece neste sábado, 24 de agosto de 2024 – dia em que o homenageado completaria 80 anos –, na Pedreira Paulo Leminski, em Curitiba (PR). Estão confirmados, entre outras atrações, Arnaldo Antunes, Vitor Ramil e Zeca Baleiro. Quem também participa do festival é Estrela Ruiz Leminski, filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz. Em 2014, ela gravou o álbum duplo Leminskanções, que resgata 25 canções do repertório do pai – tanto músicas solo, como “Verdura”, gravada por Caetano Veloso no LP Outras palavras (1981), quanto parcerias, como “Oxalá”, composta e gravada por Moraes Moreira no Pintando o oito (1983). Também gravaram músicas dele, só para citar alguns, Ângela Maria (1929-2018), Ney Matogrosso, Zizi Possi, MPB 4 e A Cor do Som.

No festival, Estrela não vai tocar o álbum na íntegra, mas avisa que algumas canções não podem faltar. Caso de “Mudança de estação” (gravada por A Cor do Som em 1981), “Dor elegante” e “Filho de Santa Maria” (as duas compostas com Itamar Assumpção, em 1988). “Lá em casa, o ‘tec-tec-tec’ da máquina de escrever funcionava como um alarme. É como se dissesse ‘não atrapalhe, seus pais estão no meio de uma ideia’”, ri Estrela, que tinha 8 anos quando Leminski morreu, em 1989. “Lembro ele me ensinando a tocar violão e lendo quadrinhos do Tarzan.” A exemplo do pai, ela enveredou pela música e literatura. Gravou, ao lado do marido, Téo Ruiz, Música de Ruiz (2011), São sons (2012) e Tudo que não quero falar sobre amor (2017), e publicou Cupido, cuspido, escarrado (2004), Poesia é não (2010) e Quando a inocência morreu (2024). “Vivem me perguntando por que os versos do meu pai são tão atuais. Como ele mesmo dizia: ‘Tem que ter por quê?’. O que sei é que eles combinam com nossos tempos: são rápidos, diretos, contundentes... O máximo dito com o mínimo”, arrisca.

Homem com cabelos lisos, pretos e ralos usa óculos de grau e bigode preto muito grande, descendo pelo queixo. Abraçada no seu pescoço está uma menina esboçando um sorriso, com cerca de dois anos. Ela tem cabelos escuros, curtos e lisos.
Paulo Leminksi com a filha Estrela, que tinha 8 anos quando o pai morreu, em 1989 (imagem: acervo da família Leminski)

 

“Vai vir o dia / quando tudo que eu diga / seja poesia”

Sozinho ou em parceria, Leminski compôs mais de cem canções. Mas fazer música era apenas uma das facetas de seu trabalho. Antes de despontar como artista, deu aula de redação, literatura e história em cursinho pré-vestibular e chegou à faixa preta de judô. “Sua faceta menos conhecida era a de judoca”, acredita o jornalista Toninho Vaz, autor de Paulo Leminski – o bandido que sabia latim (Tordesilhas, 2022), que trabalhou na mesma rua onde Leminski morava: a Dr. Muricy, em Curitiba. “Logo, trocou o judô pela literatura. Apesar do pouco tempo, era um judoca brilhante. Sempre foi talentoso e perfeccionista.” Quanto à poesia, Vaz explica que seus versos eram eruditos e populares. “Dizia as coisas mais profundas do jeito mais simples”, resume o também biógrafo de Luiz Melodia (1951-2017), Torquato Neto (1944-1972) e Zé Rodrix (1947-2009).

Dois homens estão de kimono lutando judô. Um deles está no ar, com as pernas esticadas.
Leminski em treino de judô com o professor Aldo Lubes (imagem: acervo da família Leminski)

 

Entre outros ofícios, Leminski trabalhou em agências de publicidade. Passou por diversas: Múltipla, Casulo, P.A.Z... Quase todos os dias, dava um pulo no estúdio Zapp, do fotógrafo Dico Kremer, para mostrar alguns dos versos que escrevia durante o expediente. Tirava xerox e distribuía para os amigos. “Guardo até hoje os poemas que me deu de presente”, orgulha-se Kremer. Leminski trabalhava na P.A.Z. quando lançou seu primeiro livro, Catatau (1975). Foi Kremer, aliás, quem fez as fotos de divulgação do romance. Dali por diante, tornou-se autor de alguns de seus cliques mais famosos. “Baque, queda. Foi assim que, em uma palestra sobre poesia concreta, Leminski respondeu a um gaiato que perguntou se ele faria uma poesia de improviso.” Antes disso, cansou de ver o ainda professor do Curso Abreu levar alunos para conhecer a Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Parecia Moisés guiando o povo até a Terra Prometida”, compara. Curiosamente, Leminski nunca se formou: largou o curso de letras no primeiro ano e o de direito no segundo. 

Retrato preto e branco de homem sério, usando óculos de grau. Ele tem cabelos pretos e lisos, assim como um bigode preto e espesso, comprido, descendo pelo queixo.
Versátil, Leminski foi poeta, tradutor e publicitário, entre outros ofícios (imagem: Dico Kremer)

 

Leminski começou a escrever Catatau oito anos antes de ser publicado. A ideia surgiu em 1966, durante uma aula sobre as invasões holandesas no Brasil: “O que teria acontecido se René Descartes (1596-1650) tivesse viajado para Pernambuco com Maurício de Nassau (1604-1679)?” – foi essa fagulha que deu origem ao romance. “É um livro único, de escrita inventiva e difícil de ler”, define Solange Rebuzzi, doutora em literatura brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de Leminski – guerreiro da linguagem (7Letras, 2003). “Mas, quando termina, deixa um gosto de quero mais. Como, aliás, tudo o que o Leminski escreveu.”

O poeta Tarso de Melo, estudioso da obra de Leminski, diz não saber se o autor tem uma faceta menos conhecida. Mas acredita que tem livros ainda pouco lidos. E, nesse sentido, sua obra de estreia é um deles. “É um livro bastante complexo”, afirma. “Leminski chegou a dizer que foi a grande ideia de sua vida. Como um embrião de tudo que viria depois. Gosto de pensar que tudo que ele escreveu é um convite para ler Catatau.” 

 

Não discuto / com o destino / o que pintar / eu assino

Catatau não foi o único romance escrito por Leminski. Houve outro: Agora é que são elas (1984). Versátil, escreveu infantojuvenil (Guerra dentro da gente, 1988); contos (Gozo fabuloso, 2004) e quadrinhos eróticos (Afrodite, 2015). Na imprensa, publicou críticas de autores nacionais e internacionais, como o brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967), o alemão Bertold Brecht (1898-1956) e o francês Arthur Rimbaud (1854-1891). Esses textos foram compilados no livro Ensaios e anseios crípticos (Unicamp, 2012). “Como crítico, não tinha a preocupação de ser acadêmico. Era certeiro e bem-humorado”, define André Dick, doutor em literatura comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coautor de A linha que nunca termina – pensando Paulo Leminski (Lamparina, 2004). “Diferenciou-se dos poetas de sua geração por sua multiplicidade: ao mesmo tempo que gostava de rock, era leitor de James Joyce; ao mesmo tempo que fazia redação publicitária, escrevia sobre literatura grega. Arriscou-se por vários caminhos, sem escolher definitivamente nenhum.”

Um desses caminhos foi a tradução. Seminarista da Ordem dos Beneditinos, estudou latim e grego. Anos depois, enquanto treinava judô, aprendia o japonês. Poliglota, falava ainda inglês, francês e espanhol. Traduziu nove livros: de John Lennon (Um atrapalho no trabalho, 1985) a Samuel Beckett (Malone morre, 1986). Ensaios biográficos, assinou quatro: Cruz e Souza, Bashô, Jesus (todos de 1983) e Trotsky (1986). Escritos para a coleção Encanto Radical, da Brasiliense, foram reunidos em um único volume: Vida (Companhia das Letras, 2013).

Leminski também biografou e foi biografado. Além de O bandido que sabia latim, ganhou dois ensaios: Foi tudo muito súbito (Kotter, 2022), de Rodrigo Garcia Lopes, e Uma biografia da obra (Kotter, 2024), de Sandra Novaes. “O mais surpreendente é a imensa obra produzida em vida tão curta”, observa Novaes, doutora em história pela UFPR. “Do primeiro livro ao fim de sua vida, foram 14 anos de intensa produção intelectual.”

Ao todo, a produção de Leminski compreende oito livros de poesia: Quarenta clics em Curitiba (1976), Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980), Polonaises (1980), Caprichos & relaxos (1983), Distraídos venceremos (1987), La vie en close (1991), Winterverno (1994) e O ex-estranho (1996). Desses, os três últimos são póstumos. Em 2013, a Companhia das Letras reuniu os oito livros em um só: Toda poesia. Segundo estimativas, a antologia vendeu cerca de 170 mil exemplares, número expressivo para o gênero.

“A poesia de Leminski é um sucesso estrondoso porque alia inteligência a humor. Sua inteligência é absoluta, vasta e erudita, e seu humor, rápido, sagaz e afiadíssimo”, define a editora da obra de Leminski na Cia. das Letras, Alice Sant’Anna. “Dos poetas contemporâneos, é difícil apontar quem seria um representante do Leminski. Mas há nomes que, com estilo próprio, escrevem poesia com muita verve, como Fabrício Corsaletti, Bruna Beber e Gregório Duvivier.”

Toda poesia traz na capa o indefectível bigode de Leminski. Uma homenagem, revela Ricardo Gessner, ao ex-presidente da Polônia e Nobel da Paz de 1983, Lech Walesa. Por ocasião do lançamento do livro, a Cia. das Letras distribuiu, a título de brinde, um pequeno “bigode” aos leitores. Os fãs de Leminski fizeram a festa: uns tiraram selfies; outros postaram nas redes sociais. Gessner ainda lembra da primeira vez que leu o poeta: foi em 2004, em um site de literatura na internet. Vinte anos depois, os versos de Leminski, concisos e surpreendentes, estão por toda a web. “Sua poesia fala a língua das pessoas e brinca com situações típicas, quase como se fosse um meme”, compara o doutor em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor do ensaio Da invenção à distração – o percurso lírico de Paulo Leminski (Pontes, 2018). “Era uma figura única, que criou uma identidade própria e deixou um legado que perdura até os dias de hoje.”

“Esta vida é uma viagem / pena eu estar / só de passagem”

Entre 1968 e 1981, Leminski trocou intensa correspondência com o poeta e tradutor Régis Bonvicino. Em uma carta, datada de 13 de abril de 1978, contou que estava há uma semana sem beber. “Meu fígado deu um stop. Parei de beber total”, relatou orgulhoso. “Não quero acabar como Fernando Pessoa, com hepatite etílica aos 44 anos. Pound e Maiakovski, os maiores poetas do século, não bebiam.” Por ironia do destino, Leminski morreu, 11 anos depois, aos 44 anos.

Como estaria hoje, prestes a completar 80 anos? “Não me arrisco a imaginar”, responde Bonvicino, que reuniu as cartas que trocou com o amigo no livro Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica (Editora 34, 1999). “Sua poesia é a mais imitada que conheço”, prossegue. “Ele criou uma fórmula, que era só dele. Um projeto de contracultura com um leve viés político. De tão imitado, tornou-se mainstream.”

O escritor Rodrigo Garcia Lopes tinha 17 anos quando entrevistou Leminski, em 1983. À época, o rapaz cursava jornalismo na Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná. O encontro aconteceu na Rua Jorge Cury Brahim, no Pilarzinho, onde Leminski morava. “Varria a varanda e ouvia Keith Jarrett”, recorda o autor de Foi tudo muito súbito (Kotter, 2022). “Conversamos a tarde toda. Era uma metralhadora verbal. Saí de lá impactado. Guardo até hoje a fita cassete com a entrevista.” Ao longo dos anos, os dois voltaram a se encontrar incontáveis vezes. A última foi em 5 de junho de 1989, na casa da cineasta Berenice Mendes, companheira de Leminski. Dois dias depois, Paulo Leminski Filho morreu, de cirrose hepática, no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba (PR). “Acho que ele não suportaria ver a caretice em que o mundo se transformou”, arrisca Garcia Lopes.

Na hora da morte do poeta, o jornalista e escritor Domingos Pellegrini estava no saguão de um aeroporto em Porto Velho (RO). Quando soube da notícia, por intermédio de um telejornal, talvez por causa do excesso de trabalho, não deu muita importância: “Encontrou o que procurava”, limitou-se a pensar. Tempos depois, em um evento em Curitiba (PR) sobre Paulo Leminski, se deu conta da perda que sofreu. “Nada consegui falar, chorei sem parar”, recorda Pellegrini, que conheceu Leminski em 1972 e publicou Minhas lembranças de Leminski (Geração Editorial, 2014). “Certa vez, ele me disse: ‘Gosto de você porque não tem vergonha de chorar’.”

Além do festival em Curitiba, Leminski é homenageado com uma exposição em São Paulo (SP). O evento acontece até outubro, na Fundação Maria Luisa e Oscar Americano. “Seus poemas tinham várias camadas. A primeira delas era a obviedade. Alguns dizem que seus versos eram superficiais. Era uma estratégia calculada. Por trás dessa aparente obviedade, era um poeta denso e profundo”, analisa Tarso de Melo. “Se a gente não divulgasse a autoria de seus versos, ninguém diria que eles foram escritos nos anos 1970. Era instagramável quando ainda não havia Instagram. Não estamos falando de um poeta do passado. Estamos falando de um poeta do futuro.”

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