Neste Dia Internacional do Tradutor, conversamos com Rita Kohl, tradutora reconhecida por versões para o português de obras de Haruki Murakami e outros
Publicado em 30/09/2023
Atualizado às 15:15 de 04/10/2023
por Milena Buarque
Se a tradução é um ofício literário e criativo, árduo e lento, qual é o peso das escolhas e dos caminhos feitos pelos tradutores? Na visão da tradutora Rita Kohl, a suposta neutralidade do ofício é um dos estigmas que mais vale questionar atualmente. “A tradução nunca é neutra. Eu não vou sair mexendo [na obra]. Tento limitar as minhas interpretações, deixar em aberto o que eu puder deixar em aberto, por exemplo. Mas não adianta fingir que não está passando pelo meu olhar. Você finge que não está intervindo ali, mas não tem como você não intervir”, afirma.
Tradutora, intérprete e pesquisadora na área de tradução e literatura japonesa, Rita é formada em letras pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado pelo Departamento de Literatura Comparada e Cultura da Universidade de Tóquio. Sua pesquisa é focada na tradução de literatura japonesa no Brasil. Um de nossos principais nomes no fluxo de tradução português-japonês-português, a pesquisadora é reconhecida por suas versões para o português de romances e contos de autores como Haruki Murakami, Sayaka Murata e Yoko Ogawa.
Conciliando jornadas como tradutora, professora de japonês – “Não dá para se sustentar fazendo tradução literária” – e mãe, Rita conquistou o terceiro lugar na 59a edição do Prêmio Jabuti na categoria Tradução, com a obra Ouça a canção do vento/Pinball, 1973 (Alfaguara/Companhia das Letras), de Murakami. Um dos autores mais importantes da atual literatura japonesa, Haruki Murakami é bem presente na formação de Rita como tradutora. À época fã do autor, sua segunda tradução profissional foi o livro Ouça a canção do vento/Pinball, 1973, duas novelas iniciais do hoje célebre escritor.
“Lembro sempre que a primeira obra que vi dele foi numa barraquinha da estação Liberdade: Caçando carneiros [1982]. Eu estava com uma professora da universidade e fiquei ‘Quem é ele?’, porque era um cara de que a gente nunca tinha ouvido falar nas aulas da graduação. Eu comprei e amei. Depois, li Dance dance dance (1988), me encantei e comecei a ler outras coisas dele em inglês”, diz. Rita também é a tradutora responsável pela edição brasileira do colosso O assassinato do comendador (2017), outro longo romance de Murakami – com quase 800 páginas, divididas em dois volumes –, publicado por aqui pela Alfaguara/Companhia das Letras em 2018.
Neste Dia Internacional do Tradutor, o site do Itaú Cultural (IC) inicia uma série de textos centrada no ofício da tradução e nos profissionais responsáveis pelos livros que estamos lendo. Em conversa por videochamada, Rita Kohl compartilha detalhes de como se deu o seu início na carreira e como novos suportes tecnológicos têm auxiliado na atividade de traduzir, além de reforçar questionamentos que têm sido feitos sobre a representação feminina na produção literária de Haruki Murakami com um desejo: “Gostaria de focar em traduzir mais autoras”.
Tenho a ideia da atividade do tradutor como algo analógico, com uma pilha de cópias impressas. Mas, me parece, você faz tudo no digital? Você estava dizendo [antes de a gravação ser iniciada] como é importante para o seu trabalho o uso de duas telas.
Trabalhar apenas no laptop me destrói. No primeiro livro [que traduzi], eu estava tendo muitas dores. Então, o primeiro passo foi elevar o laptop e usar um teclado separado, um mouse separado. Acho que, no segundo ou terceiro livro, eu avancei para ter uma tela extra, porque a tela do notebook é muito pequena, não é? Fico pensando que, se eu fosse mais competente em redes sociais, faria uma postagem sobre como é importante ter um espaço de trabalho que não te prejudique fisicamente. Eu prefiro fazer tudo digitalmente. Conheço muitas pessoas que traduzem a partir do livro. Eu não gosto. Acho que eu ficaria me perdendo. Trabalho com arquivos digitais ou Kindle. Gosto muito de usar o Kindle, porque ele já possui um dicionário embutido. Vou destacando o que já traduzi, porque tenho muito medo de pular partes. Então, não, meu trabalho não é muito analógico, é bem tecnológico. Muito Google [risos].
Essas ferramentas facilitaram o trabalho do tradutor, não?
Achava que era meio roubalheira no começo [risos]. Mas ajuda também como pesquisa. O que eu acho que é mais importante para o tradutor é conseguir olhar o texto e pensar: “Tem alguma coisa aqui”. Como é que você vai descobrir o que é isso? Às vezes, é uma referência. Ter esse desconfiômetro do que pode estar perdendo. Depois, eu tenho um monte de recursos para achar, para buscar o que é isso. Eu uso muito o dicionário de sinônimos, dicionário analógico mesmo. Porque você não fica dependendo só da sua cabeça. Não faz nenhum sentido.
Como você se tornou tradutora?
Olhando para trás, a gente projeta uma narrativa, né? Dois dos meus avós, de dois lados da família, eram tradutores. Do lado materno, meus avós eram italianos e franceses, tinham vindo para o Brasil e aprendido português. Já o meu avô paterno tinha estudado por conta própria e trabalhava com vários idiomas. Eu achava que era assim, que as pessoas falavam várias línguas. Então, eu gostava muito de estudar. Fui querer aprender inglês quando era criança e depois fiquei: “Vamos para a próxima”. Aí, comecei a me interessar por estudar alguma língua que fosse muito diferente do português. Eu tinha uma curiosidade de saber como é que você pensa em uma língua muito diferente. Fui para o japonês meio por acaso, um pouco pelo peso da cultura pop japonesa, que na época estava chegando, com mangá e anime, ao Brasil.
Quando foi isso?
Por volta de 1999, 2001. Sou de São Paulo, e aqui já temos um contato com a cultura japonesa em geral. Estudei muito por hobby, para ver como era. Na universidade, cursei história, mas decidi fazer algumas disciplinas de letras e me entendi muito mais lá. No entanto, nunca tive um plano de trabalhar com tradução, até porque achava impossível. Pensava que precisaria ter um nível de japonês que nunca alcançaria. Talvez apenas pessoas bilíngues conseguissem fazer algo assim, sabe? Acho que isso também está relacionado com o contexto da tradução no Brasil, que era voltada principalmente para descendentes que já sabiam falar, [que seguiam suas] línguas de herança. Então, segui pela pesquisa, me interessei por literatura e fiz mestrado no Japão. Durante o mestrado, comecei a pensar que talvez eu pudesse até traduzir. Fui me aproximando, desmistificando o trabalho, percebendo que é um trabalho como qualquer outro e que não há nada de mágico ou impossível acontecendo ali. Acredito que também tive sorte de pegar um momento em que as traduções estavam aumentando muito. Na última década, tem havido cada vez mais tradução direta.
Então, essa proximidade com a cultura pop japonesa a levou por esse caminho, mas você não chegou a pensar “Eu vou aproveitar esse boom”, né?
Acho que na época eu nem tinha noção do que estava acontecendo no mercado editorial com o japonês. Na graduação, a gente via muita coisa em inglês, quase não havia traduções. Então, é interessante essa pergunta. Eu nunca tinha pensado, acho que talvez tenha tido uma sensação de que havia muito o que fazer. Isso serviu de incentivo para mim quando comecei a traduzir, porque lembro que um editor me perguntou se eu me sentiria apta a traduzir e eu não me sentia apta, nem um pouco. Eu ficava muito insegura. Mas olhei e falei “Sim”, porque, ao mesmo tempo, tinha uma sensação de “Alguém tem que fazer, né?”. Tem muita coisa para traduzir, e acho que, na tradução, muitas coisas você só aprende na prática. Você precisa ter uma base sólida, mas não adianta ficar esperando se sentir pronto. Acho que um dos incentivos foi essa sensação de que há muitas obras para traduzir e não tem muita gente aqui querendo traduzir.
E como Ouça a canção do vento/Pinball, 1973, de Haruki Murakami, que lhe rendeu o Jabuti de Tradução, entra na história da sua vida como tradutora? Qual foi a sua primeira obra dele traduzida? Você já tinha um contato prévio com o autor, já era leitora de Murakami?
Eu era muito fã dele. Lembro sempre que a primeira obra que vi dele foi numa barraquinha da estação Liberdade: Caçando carneiros, numa edição diferente da que existe agora. Eu estava com uma professora da universidade e fiquei “Quem é ele?”, porque era um cara de que a gente nunca tinha ouvido falar nas aulas da graduação. Ela falou: “Ah, é um escritor jovem, novo”. Não sei se ela tinha lido algo dele na época. Eu comprei e amei. Depois, li Dance dance dance, me encantei e comecei a ler outras coisas dele em inglês.
Depois fui me afastando um pouco, porque queria conhecer outras coisas de literatura contemporânea. Fui ficando um pouco frustrada, até mesmo na pesquisa acadêmica do mestrado, ao ver que a única coisa de que se falava de literatura contemporânea japonesa fora do Japão era o Murakami. E as pesquisas eram muito sobre ele, sabe? É de fato um fenômeno interessante, um objeto de pesquisa muito interessante, mas eu já tinha começado a tentar olhar um pouco mais para outras coisas, conhecer outras obras de literatura contemporânea. Quando me convidaram para traduzir a primeira obra dele, na verdade, foi o segundo livro que traduzi. A primeira coisa que traduzi foi um conto, meio como um teste, da Sayaka Murata.
Depois, traduzi um livro e fui convidada para traduzir duas novelas do Murakami: “Ouça a canção do vento” e “Pinball, 1973”, que foram lançadas em um único livro. Isso foi muito emocionante para mim, por várias razões. Primeiro, porque essas obras estão no mesmo universo do primeiro livro dele que li, Caçando carneiros. Elas são como uma sequência, e foram os primeiros livros que tentei ler e decifrar em japonês. Além disso, ele é famoso e tudo mais, então ser convidada para traduzir alguém tão renomado teve um grande impacto. Fiquei pensando: “Meu Deus, imagina se a Rita da graduação fica sabendo disso?” [risos]. Fiquei muito feliz por serem exatamente essas obras de que eu gostava muito. Em seguida, veio O assassinato do comendador, que é gigantesco. Depois disso, eu estava “Não quero olhar para nenhum Murakami por mais algum tempo” e, daí, me convidaram para traduzir Sul da fronteira, oeste do sol.
Foi o volume, porque ele é um calhamaço, ou foi também uma exaustão de Murakami? Ou ambos?
Para mim, é meio difícil separar as duas coisas assim. Por ser um livro muito longo, [e] em japonês eu já leio mais devagar do que em português. Eu li uma vez e daí traduzi. Depois eu revisei, e isso foi enquanto eu estava grávida. Quando terminei, eu não estava mais muito generosa com ele, sabe? Achei que precisava mesmo de um tempo e também porque queria abrir espaço para traduzir outras coisas, com uma postura profissional de querer trazer autores diferentes. Mas Sul da fronteira, oeste do sol era um livro pelo qual eu tinha muito carinho. Gostava muito dele. Eu tinha lido em inglês em meu primeiro contato com o Murakami e gostava muito.
Você o leu então primeiro em inglês? Neste caso, quando lê depois a obra em seu idioma original, tem o costume, mesmo que involuntário, de comparar versões? De que maneira uma edição em outra língua pode impactar o seu trabalho como tradutora?
Eu tento não olhar para outras traduções no começo. Mas tem uma coisa que acontece: os editores e os revisores com quem eu trabalho nunca falam japonês. Então, eu até gosto de ter as outras traduções, porque geralmente você está traduzindo e tem mais alguns olhos olhando para aquele texto, batendo com o original. Às vezes, para pegar alguma coisa que você deixou passar, para discordar de alguma interpretação, coisas assim. E a gente não tem isso no Brasil, é raro. Às vezes, se há uma coisa de que eu não estou totalmente segura da minha interpretação em um trecho, alguma coisa assim, eu olho ali. Mas eu geralmente faço isso depois de já ter feito a minha versão, senão pode ficar enviesado. Eu geralmente leio a obra antes de traduzir.
Quais foram os desafios dessa tradução? Você se lembra de algo específico? O que você poderia compartilhar conosco?
O texto do Murakami é um texto que eu acho relativamente fácil de traduzir. Acho que ele combina muito com o que eu costumo ler ou, pelo menos, a meu ver, combina com o meu português mais usual, sabe? Então, não tem tantas coisas em que eu sinta dificuldade. Ele tem essas metáforas meio estranhas pelas quais ele é famoso. Às vezes, faz umas pontes que podem ser meio surpreendentes, mas são coisas que geralmente você consegue traduzir. Elas não apresentam um desafio linguístico tão colado ao japonês, que não viaje para outro idioma. Acredito que isso até tem a ver com um dos motivos do sucesso internacional dele. Eu acho que ele é muito traduzível. Talvez até pela influência que ele tem do inglês, porque ele é tradutor do inglês e suas grandes referências literárias são da literatura de língua inglesa. Há vezes em que eu vejo um eco do inglês no texto dele mesmo, nas estruturas de frase e tal. Ele não tem tantas coisas que são muito japonesas e difíceis de contornar. Então, muitas das dificuldades que eu vejo ali são coisas que acho no geral do japonês. Há muitas coisas de relações entre os personagens que ficam claras na forma como as pessoas se tratam, por exemplo, diferenças de registro na fala, que no português a gente tem muito menos, a gente registra menos na forma escrita. Então, esse tipo de coisa aparece bastante, mas não é um autor que eu tenha muita dificuldade em recriar no português.
Em Sul da fronteira, oeste do sol, havia um pouco mais de contexto histórico, o que foi interessante. Voltando à sua outra pergunta, quando li pela primeira vez, entendi apenas como um romance romântico, mas perdi muito do restante que estava acontecendo ali, como o contexto da bolha econômica no Japão. Isso é explicado no próprio livro, não depende tanto de mim para fornecer esse contexto.
Você mencionou essa falta de tradutores ou de traduções japonesas no Brasil. Você costuma contar com uma rede de contatos com a qual você possa discutir questões e dúvidas, por exemplo?
Eu tenho contato com outros tradutores, mas fiquei um pouco entre gerações. Há muitos tradutores que estão na geração das pessoas que foram meus professores na universidade, e eu acho que agora tem novas pessoas surgindo, e espero que cada vez mais. Inclusive, eu vejo cada vez mais pessoas que já estão indo estudar japonês pensando em trabalhar com tradução, o que me alegra muito. Eu gostaria que a gente tivesse uma comunidade maior, sim. Estou morando nos Estados Unidos e tenho contato com muitos tradutores da tradução de japonês para inglês. Até participei de uns workshops, então fui criando uns contatos que me possibilitam conversar sobre essas coisas, mas não para o lado do português. A gente tende a falar mais sobre tradução como ofício do que tirar dúvidas específicas sobre alguma coisa de texto. Mas tenho uma colega que traduz do japonês para o português, é uma amiga minha que também é tradutora, e me encontro com ela toda semana, tiro dúvidas da minha tradução.
Tenho tido uma troca grande também com tradutores de outras línguas, não só do japonês. Acho que tem havido cada vez mais conversas e diálogos desse tipo. Assim como clubes de leitura estão mais interessados em falar com os tradutores, os próprios tradutores estão aparecendo mais e falando sobre o seu trabalho. Isso tenho achado muito legal. Tem me ensinado muito.
Duas perguntas em uma: como fã antiga do Murakami, você já se cansou um pouco dele também? E a Rita da universidade já se reconhece como uma das principais tradutoras desse autor no Brasil?
Quem traduziu 1Q84 está adiante, né, só pelo tamanho [risos]. Acho que há algumas pessoas diferentes que estão traduzindo suas obras. Não me acho mais tradutora do Murakami do que os outros que também estão fazendo, mas também não me sinto mais intimidada. Sim, eu cansei um pouco do Murakami, em parte, porque cansei mesmo por essas circunstâncias práticas da vida. Como leitora, tenho preferido ler outras coisas. Mas, fora isso, como uma postura profissional de alguém que vive neste momento em que há cada vez mais traduções, acho que também é minha responsabilidade tentar trazer outras pessoas. Então, com certeza, independentemente de uma posição pessoal em relação às obras dele, gostaria de focar em traduzir mais outros autores, principalmente autoras. Porque acho que temos um desequilíbrio muito grande. E há coisas pessoais nas obras dele que acho que é uma discussão que tem aparecido cada vez mais, ele tem sido bem criticado pela forma como representa as mulheres, né?
Não é algo particular do Murakami. Acho que grande parte dos autores que li ao longo da minha juventude tem essas questões. Eles eram homens escrevendo para homens. Tem essa coisa da mulher como o outro ali, mas não estão falando com você. Da mulher como uma coisa misteriosa e que, hoje em dia, me incomoda bastante. Esse tipo de coisa tem me chamado mais atenção nas obras dele e é um dos motivos pelos quais acho que vale a pena a gente tentar olhar para outras coisas também.
Quais autoras japonesas o público brasileiro deveria ler mais, ou seja, que já estão traduzidas? E também quais autoras você gostaria de trazer para o português?
Há tão poucas autoras traduzidas, o que torna um pouco difícil. Eu gosto muito da Yoko Ogawa. O primeiro livro que traduzi foi dela. Eu a acho uma escritora muito interessante. Ela muda bastante de uma obra para a outra, mas, ao mesmo tempo, tem uma temática muito consistente. Acho que ela tem livros muito interessantes também, que não foram traduzidos, de estilos um pouco diferentes dos que a gente já tem. E acho que ela não é tão falada.
Mas outras autoras de que eu gosto muito estão começando a ser traduzidas agora. A Yoko Tawada é maravilhosa. A gente só tem uma tradução dela do alemão. Ela escreve tanto em alemão quanto em japonês. É uma escritora que mora em Berlim, escreve nas duas línguas e se autotraduz. Ela é completamente maluca de um jeito maravilhoso. Muito, muito, muito legal.
A Mieko Kawakami está sendo bem falada em inglês e é uma escritora bem interessante, que eu acho que quem gosta do Murakami pode gostar também. Ele também admira bastante o trabalho dela.
E, bom, puxando a sardinha para o meu lado, a Sayaka Murata, com Querida konbini e Terráqueos, dois livros dela que traduzi. Como leitora, não é tanto o tipo de literatura que eu tendo a ler, porque algumas coisas são bem pesadas, outras são só muito estranhas. Mas ela é uma escritora que eu acho muito única. Traduzo os livros dela muito porque eu sinto que eles têm que ser traduzidos. Gosto muito que ela esteja ganhando mais atenção. Além delas, indico a Aoko Matsuda, muito divertida, escreve umas coisas bem interessantes e é uma autora abertamente feminista.
Há muitas autoras que a gente ainda precisa descobrir, na verdade. Então, essas que eu estou recomendando são autoras que são muito filtradas também por traduções do inglês, porque até o que eu conheço acaba sendo filtrado por traduções em inglês. Fiquei muito impressionada de ver que eu li agora A polícia da memória, da Yoko Ogawa, que foi traduzido há um ou dois anos no Brasil. É uma obra de 1994. Ela foi traduzida para o inglês e ganhou um prêmio na tradução em inglês. E aí ela passou a existir. É impressionante esse processo. Tenho achado cada vez mais que a gente precisa olhar para escritoras que ficaram apagadas ao longo do século XX. Porque mesmo no Japão elas ficaram apagadas, estão sendo redescobertas agora.
O ofício da tradução também atravessa os tempos. Não só a leitura, cada vez mais problematizada, mais reflexiva, crítica, mas também o próprio trabalho do tradutor. Talvez, no passado, ficasse muito nesse lugar da transmissão, da ponte, da neutralidade, e é interessantíssimo saber da sua perspectiva sobre os autores e as obras que você traduz.
A coisa mais importante que a gente pode falar sobre tradução hoje em dia é que ela não vai ser e nunca é neutra. Se você fingir que ela está sendo neutra, está apenas impondo a sua visão como se ela fosse “a visão”. Eu acho que, quanto mais a gente tem espaço para os tradutores falarem, para reconhecer que há um tradutor ali, a gente pode assumir que isso está acontecendo: “Essa é a obra como eu a li, como eu a traduzi”. Claro, eu não vou sair mexendo. Tento ser fiel à obra, tento limitar as minhas interpretações, deixar em aberto o que eu puder deixar em aberto, por exemplo. Mas não adianta fingir que não está passando pelo meu olhar, não é? E, quanto mais a gente aceita isso, mais a gente tem liberdade para efetivamente recriar e fazer o texto funcionar mais em português, porque senão a gente fica amarrado ao texto original de uma maneira que você finge que não está se metendo, sabe? Você finge que não está intervindo ali, mas não tem como você não intervir.