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Quem traduziu? | Um tradutor em caminhos latino-americanos

O professor René Duarte comanda a Peabiru, editora que busca ampliar a receptividade do mercado brasileiro à literatura produzida pelos seus países vizinhos

Publicado em 25/11/2023

Atualizado às 17:16 de 22/11/2023

por Milena Buarque

“Quando a gente está falando de livro, a gente não está falando de pizza, tênis, sapato ou SUV [veículo utilitário esportivo]. A gente está falando de algo que vai construir uma sociedade, dentro de determinados valores, e, portanto, poderá levar o mundo para um futuro ou deixar de levar.”

A criação da editora Peabiru*, há quase dois anos, dá pistas da relação total estabelecida por René Duarte com a literatura e seus livros. O amor pela leitura pode até ter se originado na infância e em um ambiente social e familiar que fomentava essa prática. No entanto, como professor de ciências humanas, formado em história, editor e tradutor que se lança à empreitada de ingressar no restrito mercado editorial brasileiro, é de se supor a urgência de uma motivação menos individual. “Meus subjetivismos estão diretamente ligados ao que é coletivo. A Peabiru busca, entre outras motivações, promover uma ampliação do acesso ao livro no Brasil”, explica.

Autor de Terra de tormenta (2021), obra que o acompanhou durante dez anos de escrita, René coordena e integra uma estrutura enxuta com grandes ambições: abrir caminhos para a literatura latino-americana no Brasil, proporcionando maior divulgação do que os países vizinhos têm produzido em termos literários, especialmente por suas autoras.

Criada em janeiro de 2022, a Peabiru tem um posicionamento claro a favor da democracia e entende que, justamente em razão disso, o acesso à leitura é um princípio fundamental que deve ser defendido para ser alcançado. “Se a gente está falando de democracia no meio editorial, a democratização da leitura é algo coerente com essa defesa. Defesa dos valores democráticos, dos direitos humanos, dos direitos das populações vulneráveis, da vida na terra. São bandeiras que a Peabiru faz questão de levantar sistematicamente e cotidianamente, com um posicionamento bastante diverso, diferente mesmo do que o mercado está acostumado a ver”, afirma.

Ao site do Itaú Cultural (IC) René fala sobre sua trajetória como professor, editor e, sobretudo, tradutor. Em meio às burocracias do cotidiano de uma editora independente, ele compartilha as delícias e os desafios da tradução e diz o que o ofício lhe ensina todos os dias.

Veja também:
>>Quem traduziu? | Rita Kohl e a literatura japonesa no Brasil

O que a tradução lhe ensina diariamente?
A ler. Ler e escrever. Acho que não há nada melhor se você gosta de ler. Sugiro: se você fala inglês, pegue um livro em inglês. Se fala espanhol, leia um livro em espanhol. Você vai ver que terá outra experiência de leitura, vai ver o quão profundo isso pode ser e, ao mesmo tempo, o quanto você aprende a escrever. Quando você traduz, também está desconstruindo uma escrita. Está decupando uma escrita, pois você está editando aquilo. Eu acho que nada é melhor para aprender a ler de verdade e a escrever de verdade do que a tradução. Por isso que eu reputo a tradução como uma atividade que é muito mais do que técnica. É algo a que todos, especialmente aqueles envolvidos no mundo dos livros, deveriam se dedicar um pouco. Você perceberá que pode ler outras camadas.

Como você começou a traduzir na vida?
A tradução é um dos meus afazeres no meio editorial, no universo dos livros. Não foi a primeira coisa que surgiu, mas, da forma como as coisas foram acontecendo, ela se tornou inevitável. Então, antes de falar sobre o René como tradutor, eu precisaria contar um pouco sobre o René no mundo dos livros.

Como quase todo mundo que está envolvido nesse universo da literatura ou dos livros, é um amor que vem desde a infância. Eu era uma criança que sempre gostou de observar o mundo e tentar entendê-lo. Observar as coisas e tentar compreendê-las, situações e interpretá-las, assim como, é claro, ler o mundo escrito.

Minha mãe era professora, e isso também me influenciou bastante. Eu tinha um tio que lia muito e, quando eu era criança, ele me presenteava com livros. Eu era um pouco mais fechado. Mas gostava muito de sentar no meu quarto, abrir os livros e ler. Isso permaneceu em mim, em certa medida. Durante a adolescência, diminuiu um pouco, mas depois voltou a fazer parte de uma maneira muito significativa da minha vida, principalmente quando fui estudar história. Comecei a me aprofundar nessas questões de compreensão do mundo, de por que as coisas são como são, e, principalmente, a tentar entender o lugar em que eu vivia, em que vivo. O Brasil era uma questão fundamental para mim, foi a minha principal motivação para cursar história. Eu queria entender o meu lugar no mundo e o lugar do mundo em mim.

Seus primeiros contatos com a literatura latino-americana ocorreram nesse período?
Foi durante o meu período na universidade, no início do século XXI. Por algum motivo, começou a aparecer nas minhas mãos literatura latino-americana. E eu passei a me interessar por isso. Ainda se liam muito os autores homens do século XX, como Gabriel García Márquez e Eduardo Galeano. Foram esses caras que apareceram para mim e que me abriram as portas para esse tipo de literatura. Eles me deram as melhores respostas que eu consegui até hoje sobre quem eu sou e onde vivo e o que é isto que me cerca: a América Latina. Foi através desses caras que eu comecei a me entender como alguém que é um latino-americano. E perceber-me como latino-americano me deu muitas respostas dentro daquilo que eu estava buscando. A literatura em si me pareceu fascinante, então comecei a ir atrás, garimpar, pesquisar e me envolvi de uma forma muito intensa. Eu fui me especializando informalmente nessa literatura. E, então, outras gerações de autores e autoras, sobretudo, vieram e eu também quis conhecê-los e conhecê-las, como leitor e pesquisador.

A Peabiru foi criada em 2022, certo? Como ela se relaciona com a sua trajetória como professor de ciências humanas e os nossos anos mais recentes?
Eu sou apenas um entre tantos professores vítimas de perseguição política. Houve um momento em que cansei e falei: “Vou abraçar o meu outro grande amor, que é o livro. Vou deixar de lado a sala de aula, não dá mais”. Juntei todas as minhas parcas economias e comecei a investir tempo e dinheiro nessa pesquisa a respeito do que seria abrir uma editora, o que seria publicar literatura no Brasil.

A condição de professor em nosso país, sobretudo de ciências humanas e, principalmente, nos últimos anos, é muito incerta. Porque você está empregado hoje, mas no final do ano não está mais. De 2015 em diante, o que corresponde ao período do início do bolsonarismo como movimento social, sua expansão e consolidação, há uma perseguição muito grande aos professores, embora isso não apareça da forma como deveria. Essa é uma insegurança que, de alguma forma ou em alguma medida, eu também teria como professor. Sendo editor, eu não só poderia abraçar esse outro amor, que é o livro e as atividades ligadas ao livro, mas também poderia realizar essa liberdade na minha cabeça, essa liberdade que eu não tinha mais como professor no Brasil pós-2016, que é, por exemplo, falar sobre o que é o fascismo. Chegou a um ponto em que você não pode mais falar em sala de aula o que é o fascismo, quem foi Marx, sendo um professor de história.

O foco da editora é a literatura latino-americana, sendo a casa que mais publicou produções dos países vizinhos no último ano. Você é o fundador, além de ser editor e tradutor das obras. Como tudo isso aconteceu e ainda se dá?
Há uma coisa que me incomoda muito como leitor, como cidadão brasileiro, como historiador, como professor de sociologia: a gente jamais vai ser um país e uma sociedade de verdade enquanto tiver essa bolha ínfima de leitores de literatura que a gente tem. A quantidade de leitores de literatura no Brasil, perto do montante total da população, é ridícula. Como ex-professor e atual editor, eu posso dizer isso muito concretamente, partindo da minha experiência e da vivência de muita gente que conheço. Boa parte desse problema é que o livro é caro demais no Brasil. Eu sei que o meio livreiro tem pavor dessa questão, porque envolve falar da tal da cadeia do livro. E, quando você fala que o livro no Brasil é muito caro, parece que você quer destruir a cadeia do livro, quando na verdade você quer ampliar, quando na verdade você quer trazer mais leitores e, ao trazer mais leitores, fazer com que essa estrutura da cadeia do livro cresça.

“A gente jamais vai ser um país e uma sociedade de verdade enquanto tiver essa bolha ínfima de leitores de literatura que a gente tem.”

O que acontece com a Peabiru: eu foquei em uma dinâmica editorial que me garantisse um preço final mais baixo, que me desse pelo menos a possibilidade de vender os livros a um preço final que pessoas como eu pudessem pagar. Uma dinâmica pela qual eu faço as traduções, sou o editor e responsável pelo projeto editorial, faço as vezes de vendedor. Então, ao enxugar essa máquina – termo horroroso, mas a ideia é essa – e montar uma microestrutura, como os meus recursos eram e são restritos, eu tinha que ter uma estrutura reduzida. E com essa estrutura, com esse aporte financeiro reduzido, eu trabalho 14, 16 horas por dia. Porque faço tradução, faço todo o projeto editorial, faço as vendas, faço a curadoria, faço contato com os autores, os contratos com os autores, os contatos com a imprensa, os contatos com as pessoas do meio. As entrevistas, como estou fazendo com você.

Como você se organiza nesse sentido? Como a tradução se insere em uma rotina com dinâmicas, por assim dizer, burocráticas, ainda que comuns ao mercado editorial?
Eu passo boa parte do meu tempo nisso, mas não é algo que me desagrada; pelo contrário, um prazer muito grande que eu descobri é justamente a tradução. Porque não é só aquela questão do automatismo: você tem que entender o estilo da obra, a abordagem do autor, as intenções. Às vezes, é quase que uma reconstrução textual. E, para mim, a tradução foi uma descoberta maravilhosa, porque, como leitor, o que mais me chamava atenção, o que mais me encantava, era justamente ter a leitura como interpretação, como compreensão das camadas de uma obra. E a tradução permite isso de uma forma como nenhuma outra atividade permite. Foi amor à primeira vista e um envolvimento muito grande. Eu traduzo todos os dias, durante horas.

“Quando você traduz uma obra, você lê essa obra em todas essas camadas que é capaz de ler. Não haverá nenhuma outra atividade que te garanta uma leitura tão profunda como a tradução, porque você está trazendo aquilo para a tua língua.”

Eu tento estabelecer certa rotina todas as manhãs. Se eu não tiver outra coisa planejada, vou traduzir das 7 ou 8 da manhã até às 11 horas ou meio-dia, de segunda a sexta-feira. Eu traduzo um livro de cada vez, para me manter focado naquele universo e não perder o fio da meada. Essa é basicamente a minha rotina todas as manhãs, e às vezes um pouco à tarde também. Mas acho que, mais do que isso, o trabalho pode perder qualidade e se tornar muito cansativo. Mesmo que você goste do que faz, é um trabalho que exige um esforço intelectual considerável, pois não é automático. Como estávamos conversando, é preciso pensar no contexto, encontrar a melhor expressão e lapidar cada frase.

Você já traduziu aproximadamente 15 obras desde a criação da editora. Quais são as maiores dificuldades de ser um tradutor em uma casa independente com essa proposta?
Há uma dificuldade técnica na tradução de regionalismos latino-americanos para o português. Às vezes, por exemplo, os autores argentinos escrevem em uma ordem um pouco diferente da nossa. Há esses desafios, mas são facilmente superáveis.

A maior dificuldade enfrentada pela Peabiru, uma editora que busca ampliar o acesso ao livro no Brasil, é cultural e política. Existe uma resistência ao que é de fora e um corporativismo no meio editorial. As relações obedecem a determinada lógica, a determinada dinâmica que me lembra muito o feudalismo, como professor de história. Já passamos séculos disso na cultura ocidental. Somos uma sociedade que tem muita dificuldade em lidar com uma democracia profunda. E estaria tudo bem se o problema fosse só meu, se só a Peabiru, a editora que mais tem publicado literatura latino-americana no Brasil desde o ano passado, fosse cortada das feiras de São Paulo.

Popularizar o acesso ao livro diz respeito à construção de um país em meio a movimentos extremistas que colocam em xeque a importância da cultura, que questionam a importância do livro e da literatura e que tentam rebaixar determinadas modalidades de cultura, desmerecer, deslegitimar. Essa questão, é claro, não é de responsabilidade apenas do meio editorial – também há ausência quase que absoluta do poder público nisso.

As pessoas no Brasil não têm o direito de escolher o livro que vão ler. Então, dificilmente vão gostar de ler se tiverem que ler aquele livro que foi dado a elas porque alguém doou ou porque estava disponível na biblioteca. Como o brasileiro vai escolher o que vai ler se boa parte dessa gama de possibilidades está completamente fora?

Dos livros traduzidos por você, qual é o seu predileto como leitor? E qual é a leitura que você gostaria de ter traduzido ou ainda ter a experiência da tradução?
O meu livro da vida, por mais que eu tenha lido muita coisa depois, é Cem anos de solidão (1967) [de Gabriel García Márquez]. Estamos em outro momento histórico da literatura latino-americana, mas o impacto que ele teve na minha vida, por ter me jogado dentro desse universo, foi definitivo. Então, gostaria, sim, de traduzir Cem anos de solidão.

Há alguns livros que eu não consigo entender muito bem por que não fazem tanto sucesso no Brasil, como Fúria (2022), da mexicana Clyo Mendoza. É um livraço, completo, dialoga com essa literatura, digamos, mais tradicional da América Latina e apresenta abordagens extremamente contemporâneas sem abandonar um traço daquilo que seria mais estrutural e clássico da nossa literatura. Fala de ódio, de amor, de horror e não fica forçado, é uma prosa muito poética. Fúria é um dos melhores que eu li na minha vida.

Capa do livro “Fúria”, de Clyo Mendoza. O título da obra aparece em branco e os nomes do autor e da editora Peabiru estão em vermelho. Há o desenho de montanhas.
Fúria (2022), de Clyo Mendoza | imagem: divulgação


Vou destacar também um livro de contos que eu acho que merecia outra consideração, que é a obra da equatoriana Solange Rodríguez Pappe, 
Uma nova espécie (2023). Fora do Brasil, ela usa outro título, mas aqui a escritora pediu que ficasse assim. É um livro brilhante do ponto de vista da construção dos contos e da forma como esses contos constroem uma obra. É extremamente coeso. Um livro muito interessante. A abordagem que ela dá para a questão da mulher e da vida na terra também é muito bonita. Então, eu diria que esses dois livros me chamam atenção demais entre os que já traduzi.

Capa do livro “Uma nova espécie”, de Solange Rodríguez Pappe. O título aparece em azul e o nome da autora em rosa. Em bege, há o desenho de chifres. E, em verde, o nome da editora Peabiru.
Uma nova espécie (2023), de Solange Rodríguez Pappe | imagem: divulgação

 

Na sua visão, o que os leitores brasileiros podem aprender com a literatura latino-americana?

Eu acho que podem aprender quem somos nós. Aonde nós podemos chegar? Porque a gente não vai se tornar uma Suécia, a gente não vai se tornar um Canadá – felizmente, porque a gente não é isso. A nossa formação não é essa. Se a gente conhecer os nossos vizinhos, a gente vai se conhecer muito melhor. Vai perceber uma série de semelhanças, uma série de alternativas em que a gente tenha pensado. Vai se fortalecer, inclusive, do ponto de vista político, num mundo globalizado, num mundo em que as diversas regiões do globo se organizam como blocos. A integração regional deve passar também pela questão da cultura.


(*) Peabiru tem sua origem no tupi antigo e denomina os caminhos conhecidos e utilizados por povos indígenas na América do Sul antes da chegada dos colonizadores europeus ao continente. Ligando o litoral ao interior, essas rotas atravessavam os atuais territórios do Brasil, da Bolívia, do Paraguai e do Peru.

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