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Traços de identidade: a arte da tatuagem no Brasil de hoje

No Dia do Tatuador, pessoas contam suas relações com o que foi desenhado em suas peles: de homenagens a representações de obras de arte brasileiras

Publicado em 20/07/2024

Atualizado às 16:13 de 17/07/2024

por André Felipe de Medeiros

Imagine a experiência de ser tatuado por um artista que você admira muito. Foi o que viveu o jornalista Dayw Vilar ao fazer sua primeira tatuagem, aos 25 anos, quando Manoel Quitério registrou em sua pele um desenho de Iansã. Mais tarde, ele passou pelo mesmo processo com outra contemporânea, Isabella Apolinário, com quem fez outras três tatuagens - uma volta de Saturno, um movimento de dança e um pássaro em homenagem à avó.

Interessado por artes desde criança, Dayw conta que tem “a sorte de ter nascido em Pernambuco”, lugar de “uma tradição muito forte com arte, em amplo aspecto”. Fã do Movimento Armorial, ele aplicou com outros profissionais duas reproduções de Gilvan Samico, O fazedor do amanhã e O sagrado.

Tatuagem vazada em preto mostra um pássaro preto voando em direção a uma lua, também vazada, mas vermelha.
“Não tenho uma tatuagem fora desse contexto de algum artista que não me emocione com algo”, explica o jornalista Dayw Vilar (imagem: acervo pessoal)

 

“Não tenho uma tatuagem fora desse contexto de algum artista que não me emocione com algo”, explica o jornalista, que vê nessa linguagem “uma forma de virar tela, veículo de expressão de algo nobre que é a alma do artista. E tem poesia até na hora de precisar ir fazer algum retoque, porque o tempo age - a cor se vai, a linha fina vai sumindo. É um relacionamento, eu acho, pode ser assim dito: você e a arte, a arte em você, pertinho”.

O tatuador paraibano Zé Leite concorda que “além do Brasil ser muito diverso culturalmente, o Nordeste é muito rico. As pessoas daqui sentem muito orgulho disso e querem retratar um pouco do que sentem”. Seus trabalhos partem dos elementos que os clientes querem retratar e ganham inspirações poéticas para compor o desenho final. “Saudade é um grande combustível para as pessoas que querem registrar na pele com emoção o lugar ou as pessoas de onde elas vieram”, conta ele, “gosto de retratar cenas do cotidiano de lugares do interior, em meio aos cactos, que quem tem família nessas regiões consegue se identificar. Às vezes, elas foram morar fora e querem homenagear os pais ou os avós a partir desses elementos. Acho bonito”.

Da margem ao centro

A cultura da tatuagem no Brasil é relativamente recente, da segunda metade do século 20. Seu início tem como marco a chegada em 1959 do dinamarquês Knud Harld Likke Gregersenn, mais conhecido como Lucky Tattoo, em Santos (SP), onde fundou o primeiro estúdio do país com equipamento elétrico. Em 2007, foi declarado que a data de seu desembarque - 20 de julho - como o Dia do Tatuador em todo território nacional.

Se hoje essa atividade está tão ligada ao registro de afetos e memórias em pessoas de todos os recortes sociais, essa dinâmica é ainda mais recente. Por décadas, a tatuagem estava ligada a grupos marginalizados e não tinha espaço em ambientes corporativos e religiosos, por exemplo. Na era da informação, contudo, a atividade ganhou nova popularidade, aceitação como expressão pessoal e também um novo status de arte.

A paulistana Aline Lima tem como inspiração para suas obras a linguagem da xilogravura. Seus pais a levavam todo ano ao sertão do Ceará, onde eles nasceram, e ela conta ter sido muito impactada por aquela realidade tão diferente da vida na metrópole. Após o falecimento do avô, sua família deixou de visitar a região com frequência. “Comecei a pesquisar a arte de lá para me conectar ao local e encontrei a xilogravura”, explica Aline, que aprendeu essa técnica com seu professor de graffiti, que também era filho de cearenses. Em seguida, ela incorporou essa estética em suas tatuagens.

“Pensei em trazer coisas que eu gostaria de ter tatuado, que representam a minha história e a da minha família”, conta a artista, “quando comecei, tinha muito mais tatuagem old school, mais inspiradas na cultura de fora. A ideia de trazer a tattoo na pegada de xilogravura foi justamente para isso, trazer nossa cultura para o mundo da tatuagem”. A princípio, “trouxe o que estava em mim”, explica, “minhas lembranças muito características do Ceará, como uma cuscuzeira, ou um xique-xique. As pessoas começaram a vir com outras ideias parecidas, a partir de suas próprias memórias afetivas. Uma pessoa que gostava muito de tomar café com a avó quis fazer a cafeteira com um copinho, por exemplo. É uma forma de estar mais perto”.

 “Um menino que morava fora e que gosta muito de arte me pediu para fazer um Abaporu”, diz Aline, “já fiz uma releitura de Baleia, do livro ‘Vidas secas’, e de um Portinari. Mas não é algo recorrente, geralmente me pedem para mesclar a minha estética com a do artista original. Ontem, atendi com uma história parecida com a minha, com o pai que veio do Ceará e quis passar sua cultura aos filhos. Fizemos alguns cenários com algumas casinhas e uns cactos, incluindo um cenário noturno. Me pedem muito para fazer a noite porque em São Paulo nós não conseguimos ver tanto o céu. Então, sempre querem uma noite estrelada, ou mesmo um solzinho”.

Especialista em tatuar pessoas pretas - tanto como tema, quanto como pele -, o mineiro Pablo Xamã também combina afetos e identidade em suas criações. “O meu público busca mais representações de pessoas que já se foram da família”, explica ele, “como alguém que perdeu um parente há algum tempo e encontrou no meu trabalho a possibilidade de representar aquela pessoa na pele”. Da mesma forma, o tatuador explica que atende com frequência pedidos de representar “personalidades marcantes na cultura brasileira e na cultura preta mundial”, como Zumbi dos Palmares e Dandara.

Braço masculino mostra tatuagem na cor preta com rosto de mulher. Os olhos são vazados e ela usa um turbante.
Especialista em tatuar pessoas pretas, o mineiro Pablo Xamã combina afetos e identidade em suas criações (imagem: Reprodução @pabloxamatattoo)

 

Para ele, as motivações dessas tatuagens vêm “do resgate do que sempre tivemos, mas ao qual nunca nos sentimos pertencentes, que é a brasilidade, a verdadeira brasilidade de origem indígena e africana, que foi o que construiu o país. Por muito tempo, essa cultura foi inferiorizada e, de uns tempos para cá, aconteceu o avivamento desse sentimento de pertencimento a isso. As pessoas tatuarem [esses temas] é um reflexo desse movimento cultural e social. Meu público, que são majoritariamente pessoas pretas, não sentia que poderia pertencer à história da tattoo até muito recentemente, porque não víamos peles não brancas sendo trabalhadas como uma possibilidade de beleza. Ainda hoje, existe esse estereótipo que tatuagem bonita é em pele branca, e isso está longe de ser verdade”.

Pablo comenta também que “quando havia representações de pessoas pretas em tatuagens, elas eram também feitas de formas muito estereotipadas. Ainda ouço em meu trabalho comentários como ‘que bonita essa mulher africana’, sendo que não diz em lugar nenhum que ela é africana, ela é apenas preta. Mas vivemos em um país com a maioria de pessoas pretas. Você sai na rua e vê pretos com todo tipo de aparência. Quero, com meu trabalho, que outras pessoas pretas se identifiquem”.

Obras de arte

Além das representações histórias familiares, a expressão de identidade na tatuagem acontece também por meio de símbolos compartilhados em seus meios sociais. Muitos deles são produtos culturais da indústria do entretenimento, de filmes como Guerra nas estrelas a referências a bandas e cantores. Da mesma forma, o público fã de arte leva para a sua pele ilustrações que remetem a obras das mais variadas linguagens.

Foi assim com Letícia Tomás, que tatuou uma das esculturas da série Os bichos, de Lygia Clark. “Estudei artes visuais e conheci Lygia nas aulas de poéticas do corpo”, conta ela, que não teve muito apreço pela artista no primeiro contato com suas performances. “Conheci sua série Os bichos, que são esculturas manipuláveis, e todo seu trabalho fez sentido para mim. Alguns anos depois, vi vários dos seus ‘bichos’ na Pinacoteca de São Paulo, fiquei muito tocada por eles e resolvi tatuar”.

Braço feminino estendido exibindo uma tatuagem em preto com formas arredondadas se cruzando.
Letícia Tomás tatuou uma das esculturas da série Os bichos, de Lygia Clark (imagem: acervo pessoal)

 

Ela diz ter deixado a própria tatuadora escolher tanto a escultura específica, quanto a posição em seu braço. “Tenho vontade de fazer mais outras três versões dela, em outras posições”, explica Letícia. “Nunca ‘encomendei’ um desenho, sempre busco artes que já existem e eu gosto”, e acrescenta que coloca nessas obras, agora em sua pele, seu próprio significado.

O fotógrafo Raphael Diniz passou por um processo semelhante, também a partir do contato pessoal com uma obra no espaço físico.

“Em uma visita ao Itaú Cultural, na visita Expedição brasiliana, me deparei com a pintura O caboclo, de 1820, de Debret. Fiquei tocado pela forma como ele retratou a nossa cultura e história. Decidi fazer uma tatuagem dessa obra porque achei interessante ter no corpo esse fragmento pictórico de uma época em que não existia fotografia ainda”.

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Outra de suas tatuagens veio de uma linguagem artística menos comum: o design mobiliário. “Tenho uma grande admiração pelo trabalho de Sérgio Rodrigues, especialmente pela sua habilidade em trabalhar com a madeira e pelo seu posicionamento político”, conta Raphael, “decidi fazer uma tatuagem de uma das famosas poltronas como forma de homenagear esse talento incrível. Além disso, suas criações eram frequentemente inseridas em ambientes e arquiteturas públicas, algo que sempre me fascinou. Ter essa tatuagem é uma maneira de carregar comigo a essência do seu design e a importância de suas contribuições para o mobiliário e a arquitetura brasileira”.

Muitas das pessoas que procuram a tatuadora Letícia Gadelha estão atrás de sua estética, ligada ao Modernismo brasileiro. Outra paulistana filha de cearenses, ela define seu traço como “muito brasileiro, com características nordestinas” e observa que os clientes que lhe pediram para reproduzir obras de arte, como o Abaporu, gostam de notar as semelhanças entre seu estilo e o original. “Você procura uma pessoa que se identifique com Tarsila do Amaral para uma tatuagem dessas, porque o trabalho será muito mais genuíno do que se feito por alguém que não se identifica”, explica ela.

Braço estendido mostra tatuagem em homenagem ao sambista Cartola. O desenho mostra homem sentado, com violão no colo, de óculos escuros, tomando café em uma xícara pequena, usando calças e meias com detalhes verde e rosa. Há um sol acima de sua cabeça.
Tatuagem em homenagem a Cartola, feita por Letícia Gadelha (imagem: Reprodução @legadelha)

 

Letícia comenta que muito do seu trabalho como tatuadora está na pesquisa imagética, mas grande parte é também escutar o cliente. “Tenho que me colocar no lugar do outro para ter uma visão mais ampla do que me está sendo pedido”, conta a artista, “meu processo de criação é buscar referências, ver vídeos e conversar com as pessoas”. Temas afetivos e familiares são frequentes em suas criações, que atende a pedidos como a casa de vó com crochê e chimarrão, ou festas de São João. “Assim como a moda, é uma forma de expressar quem somos”, conta, “escolher tatuar algo é mostrar ao mundo as suas maiores ligações”.

“Meu tipo de cliente tem muito orgulho de ser brasileiro”, diz Letícia, “são pessoas que consomem muito a cultura brasileira, ouvem muito samba e MPB, vivem o que simbolizamos como brasileiro, nossa identidade nacional. E isso se conecta com a minha vida. Para mim, é fácil mostrar o Brasil ao mundo, porque é com isso que me identifico e gosto”.

 

 

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