Coletivo de teatro sediado no centro da cidade de São Paulo, o Grupo Redimunho preparou o seguinte depoimento com base em provocações...
Publicado em 04/03/2016
Atualizado às 10:21 de 03/08/2018
“O Grupo Redimunho de Investigação Teatral surgiu em 2003 e se fundamenta na disciplina da pesquisa e do estudo da arte dramática. As primeiras leituras e os estudos realizados em salas de ensaio do Teatro Sérgio Cardoso (e em salas de apartamentos diversos) possibilitaram, entre tantas coisas, o encontro com a obra singular de João Guimarães Rosa, exatamente o que procurávamos. Desde então, o norte de nosso trabalho é o universo do homem do campo.
“é essencial que haja muitos aspectos em comum e muito desejo para se permanecer num coletivo de teatro”
De forma bem simplista e objetiva, um coletivo, para nós, é um grupo de pessoas que, por algum motivo, decide conviver, trabalhar, discutir, compartilhar ideias – no nosso caso, ideias artísticas – e tudo o que se articule a elas. Portanto, nesse caldeirão, acabam por agregar também ideais políticos, econômicos, sociais, culturais... Ou seja, um modo de vida muito próprio.
O coletivo do Redimunho sempre se caracterizou por um volume grande de pessoas, em média 20 por processo. Houve uma época em que tínhamos mais de 30 pessoas no trabalho diário... É gente pra caramba para um coletivo de teatro! Temos por essência, em determinados momentos dos processos, abrir nossas portas para que interessados possam acompanhar nossas atividades, e isso tem o seu lado bom e o seu lado ruim: é bom porque criamos a possibilidade de arejamento, de vida nova, de sangue novo dentro do coletivo; e ruim porque se cria a sensação, nos membros mais antigos, de estar voltando alguns passos, já que os novos integrantes levam certo tempo para ‘se achar’... Então, acabamos tendo que retomar discussões antigas, voltamos a ter problemas que pareciam estar resolvidos, e por aí vai... Muitos se localizam rapidamente, outros não, e o próprio processo acaba selecionando-os... Uma espécie de seleção natural provocada pelo dia a dia de trabalho.
Assim, é essencial que haja muitos aspectos em comum e muito desejo para se permanecer num coletivo de teatro; o trabalho é duro, é diário, o lado financeiro é difícil, temos uma estética e uma linguagem pesquisadas ao longo dos anos, que, mesmo que estejam em permanente construção e movimento, já existem... Então, quem entra no grupo precisa conhecer o universo em que trabalhamos e saber qual a nossa linha de pesquisa. Senão é perda de tempo para ambos os lados.
"O Redimunho se forma com a junção de artistas que estavam cansados de se submeter ao ‘mercado de trabalho’, e por não terem como produzir sozinhos, encontraram na formação de um grupo uma maneira de se organizar naquele momento."
O coletivo possui um núcleo de artistas, que chamamos de ‘núcleo duro’ e que é responsável por conduzir e planejar as atividades desenvolvidas. São artistas que estão no grupo há mais tempo e conhecem mais profundamente a realidade do trabalho e seus modos de produção. Contudo, nosso trabalho é extremamente coletivo e artesanal, todos sempre estão envolvidos em todas as atividades. Aqui o pessoal pega na vassoura, limpa banheiro, faz figurino, constrói cenário, cria cena... Tudo é feito em conjunto. Essa é uma das nossas grandes essências. Um trabalho que possui uma força coletiva muito grande, o que acaba por reverberar em cena. E esse modo de produção está intimamente ligado à época em que o grupo se formou, em meados de 2003.
O Redimunho se forma com a junção de artistas que estavam cansados de se submeter ao mercado de trabalho e, por não terem como produzir sozinhos, encontraram na formação de um grupo uma maneira de se organizar. Sem dinheiro, sem lugar para ensaiar, o coletivo teve um início marcado por muita luta e dificuldade, e, como consequência quase que natural, o trabalho ganhou suporte nessa ‘força coletiva’. Foi com o primeiro espetáculo, A Casa, de 2006, que algumas luzes começaram a surgir. A pesquisa, a construção e a montagem desse trabalho foram feitas sem nenhum centavo, à base de parcerias e de alguns apoios. O espetáculo foi sucesso de público e crítica, ficou por dois anos consecutivos em cartaz na cidade de São Paulo. Isso foi uma grande realização para nós. Graças a essa peça fomos premiados pela primeira vez pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, após termos concorrido sem êxito em várias edições do programa. Foi preciso persistir, foi preciso estrear o espetáculo para que nos conhecessem, para que acreditassem que éramos capazes de realizar. Literalmente. Um dos jurados, que por sorte estivera em edições anteriores da comissão julgadora, nas quais nossos projetos apresentados ainda eram apenas sonhos, se alarmou com o fato de naquela edição deparar-se novamente com um projeto do Redimunho, só que agora com a pesquisa posta em cena, em temporada e fazendo barulho na cidade. Resolveu nos assistir e pôde comprovar que o jovem grupo havia realizado todo o processo de investigação e colocado em cena os seus resultados.
“Acreditamos que nosso teatro deva ser transgressor, que ele precisa ser muito mais que entretenimento, um teatro que se propõe à disputa de pensamento na cidade e à luta por uma sociedade mais justa e menos cruel”
Hoje, somam-se seis contemplações pelo programa, o que, decerto, estruturou e propiciou a continuidade do trabalho do Redimunho. Foram quatro espetáculos criados e duas publicações em pouco mais de dez anos de história, além de contrapartidas sociais diversas e uma ampla pesquisa no campo teatral. Cada início de processo é encabeçado pelo ‘núcleo duro’, desde a escrita dos projetos até a organização das atividades. A direção artística é realizada por Rudifran Pompeu, que também é o dramaturgo e fundador do coletivo e tem grande peso nos caminhos artísticos que seguimos, pois, geralmente, parte dele a fagulha necessária para o desenrolar da pesquisa. Ele atua como uma espécie de provocador e mentor estético do grupo. Assim estruturamos nossa continuidade artística. A cada trabalho encerrado, muitas perguntas são respondidas e outras tantas surgem. Um processo engatilha o outro. Com ou sem subsídios, mantemos nosso cotidiano de trabalho e estamos continuamente em atividade.
Se há um projeto a ser concretizado, nosso foco é a pesquisa, o plano de trabalho e os objetivos que nos propusemos a alcançar. Somos extremamente investigativos, as questões que nos movem são as do nosso tempo, somos sempre conduzidos, desde o primeiro processo, pelo nosso guia literário João Guimarães Rosa. Não temos nenhuma intenção de satisfazer as demandas do mercado, não nos interessa a adequação comercial de nossas criações. Temos um tempo e um modo singulares de produzir, realizamos espetáculos que dificilmente se enquadrariam na lógica da indústria cultural. Acreditamos que nosso teatro deva ser transgressor, que ele precisa ser muito mais que entretenimento, um teatro que se propõe à disputa de pensamento na cidade e à luta por uma sociedade mais justa, menos cruel, ao resgate do tempo em que o ‘humano’ ainda possuía alguma dimensão valiosa. E, por essas características e contingências, sempre pleiteamos espaço dentro daquilo que chamamos de políticas públicas para a cultura, na crença de que nossas pesquisas atinjam um lugar de relevância no mapa teatral da cidade.”