Análise crítica e poética da segunda semana da mostra “Dança agora”
Publicado em 24/11/2021
Atualizado às 11:37 de 23/11/2021
por Daniel Fagus Kairoz
Peço licença às artistas para fiar mais algumas palavras nesta trama-texto em conversa infinita com as danças apresentadas em vídeo na segunda semana da Dança agora, quarta mostra de dança do Itaú Cultural (IC). Nessa segunda semana tivemos a oportunidade de fazer uma oficina de dança com Duda Maia, O osso se lança no espaço, e de acompanhar o lançamento do livro Dança, residências artísticas e composição em tempo real, do artista René Loui, juntamente com o coletivo Cida, evento que tive o enorme prazer de mediar.
Veja também:
>>Sobre a mostra “Dança agora” (ou Um texto que dança)
Na semana passada ainda pudemos dançar conduzidos por Kety Kim Farafina (BA) através dos saberes de dança do oeste africano e participar da conversa mediada pela coreógrafa e cineasta Carmen Luz (RJ) com Renata Pimentel e Mônica Lira, ambas pernambucanas, diretoras do documentário Conceição em nós, sobre a trajetória do Grupo Experimental de Dança do Recife. Também não menos importantes foram as conversas com os artistas após a apresentação de seus trabalhos, aproximando o público de seus processos de criação, suas inquietações, seus jeitos de corpo, seus sotaques, seus percursos, seus pensamentos, suas lógicas poéticas, seus mundos.
Uma mostra com uma proposta curatorial coerente e em diálogo com as questões mais atuais, colocadas pelos artistas das mais diversas áreas neste nosso agora. Mais uma vez ressalto a importância de uma mostra de dança como a realizada pelo IC e da necessidade de ampliar e investir ainda mais nessa manifestação artística para que o evento possa seguir se expandindo, preservando sua riqueza em diversidade, primor artístico, respeito aos artistas e coerência, fomentando as mais diversas danças cultivadas neste chão Brasil.
A segunda semana
Vimos, na segunda semana, a estreia da dança da Cia. Dual (SP), além das danças fruto dos encontros – propostos pela curadoria – entre as artistas Deise de Brito (SP) e Renata Kabilaewatala (GO); Irani Cippiciani e Silvana de Jesus, ambas de São Paulo; João Paulo Lima (CE), Raíssa Costa (AM) e Fabiano Nunes (RS); e Jessé Batista (AL) e Marconi Araújo (RN).
Cia. Dual
Deitados olhamos para o céu. Uma pá joga terra sobre nossos olhos. Há certo olhar que precisa ser enterrado, nos diz a Cia. Dual. Bruta mirada. A terra cobre nosso campo de visão. Breu. Corpos arrancados de suas terras, a experiência-limite do desterro. Como dançar quando nos tiram o chão? Uma dança que se faz arqueologia, que busca o osso da dança. As matérias e suas memórias movediças. O pé na terra. A pulsação na pele. Mais uma vez Xangô é evocado, Kaô Kabecilê! Caminho e justiça. Retomada da terra é também retomada do corpo das suas danças dos seus saberes. Danças que ressoam espaços: sertão, ser tanto. Fluir como a água, pois sertão não é só secura. Corpos desterrados buscam através da dança seu fio sem fim da ancestralidade, essas coisas que a gente sabe e esquece, que ficam adormecidas. Sertão, ser canto, reza, choro, prece. Um chão amarelo. Um corpo estendido no chão já não celebra mais a coroação do rei de sua terra. Sua face-terra espelha céu árvore sol. O chão é o elo. Desassossego. Deus e Diabo que se encontram na grandeza do ser que dança. Corpo fóssil dança com a morte. A morte é a vida da terra. Entre morte e vida não há oposição, mas continuidade desdobradura. As portas abertas das casas. O quintal-terreiro. Um corpo dança contra a luz. O sol se põe. Ocaso. Oeste. Ocidente.
Deise de Brito e Renata Kabilaewatala
A água deságua em dança através dos corpos de Deise e Renata. No caminho, o encontro. Paisagens fluidas. Um mergulho na sombra – calor e frescor se entrelaçam nas tramas do vídeo. Uma mulher dança corpo todo prazer na fluidez da forma conduzida pela força coreográfica das águas. Outra mulher corpo-sombra flui pelo quente da luz que projeta mundos encruzados. Elas se encontram na terra. Mais uma vez o chão é o elo. É o lugar de encontro. Encontro meu corpo encontro-me com outro corpo. Temos um chão que nos acolhe em dança. Dançamos com a terra, pela terra. Uma dança acolhimento. Uma dança cumplicidade entre duas mulheres negras. Uma dança que se dá pelos caminhos ao fim do dia. O sol se põe. Ocaso. Oeste. Ocidente.
Irani Cippiciani e Silvana de Jesus
Angola, Índia. Caminhos encruzilhados. Aqui é a ancestralidade quem guia. Dois mundos se aproximam através das suas danças sagradas, suas tradições. Irani e Silvana ritualizam o encontro. O vídeo nos dá a ver emanações gestuais de distantes mundos. Gestos que ressoam. Corpos que ecoam coletividades povos. O rito é a encruzilhada entre eles. Não há rito sem humildade, respeito, devoção. Pedir licença aos mestres para dançar. Através dos corpos esses vastos e distantes mundos materializam o encontro anunciado pelo vídeo. O corpo se faz encruzilhada, morada de divindades. Elas brincam entre mundos. Atravessam de um mundo para outro dançando. Corpo potência do encontro. Corpo que é multidão de corpos. A força de dançar em um chão cultivado por muitos e muitos antes da gente. Ser continuidade. Ser resistência para continuar. Dançar para se proteger da violência de um mundo que se impõe sobre outros. Se a terra não me comer, para o ano que vem eu voltarei. O mundo está em constante mudança, e é preciso aprender a mudar com ele. Aprender a se mover entre a resistência e a mudança. Entre a tradição e o frescor do novo. Eis a ciência da dança.
João Paulo Lima, Raíssa Costa e Fabiano Nunes
Distâncias intransponíveis. O desabandono aproxima João, Raíssa e Fabiano. O horizonte, a imensidão, se vê através de um buraco na parede. Porém o corpo faz parte do buraco. Sua dança se dá no buraco entre cômodos e incômodos. Outro corpo aparece emaranhado. Corpos-ruína. O abandono do mundo reiterado nos discursos que emolduram as danças. Reiterado nas imagens de abandono de uma nação ilusória unida pelo abandono. Corpo emoldurado. Ruínas. Ressonâncias com o ocaso. O Ocidente traz em seu nome o fim. O fim de um mundo. O fim de uma arquitetura. O fim de certa ideia de dança. Corpos sem casa e casas sem corpo. A tal da arquitetura da destruição. Pelo buraco desse mundo vemos a dança. Uma outra dança. Uma dança possível. Um mundo possível. Mas estamos ainda em meio às ruínas. As forças melancólicas saturninas tomam nossos ouvidos, através da música, através das palavras que portam certo tom de lamento. Corpos que não se encontram ressoam as ruínas do Ocidente.
Jessé Batista e Marconi Araújo
Mãos em vão tentam reerguer esse mundo que ruiu. Atrito. Jessé e Marconi. Pés descalços tateiam uma dança pelas pedras. Corpos rastejam pelos escombros. Buscam outros apoios. Outras danças. A pedra que move o corpo. Mais uma vez a pedra é coreógrafa. As matérias e suas forças coreográficas. Corpos sobre pedras. Impossível manter-se de pé. As ruínas da arquitetura, a perda da verticalidade. É preciso retomar o movimento do seu grau zero. Do chão. Por entre as pedras.
Poderia ter escrito perdas, talvez nem se percebesse.
Um corpo que não tem os pés como apoio nos apresenta outro mundo. Faz-nos vislumbrar outras danças possíveis em meio às ruínas. Um corpo que busca uma dança por entre os escombros desse mundo não tem nada a perder. Mas é preciso insistir, continuar, mesmo que para isso seja preciso parar. A parada também é movimento. Ou poderia ser. Aqui há um corte nessa busca por essa outra dança. Por fim, o fim. Rodas deslizam imunes sobre as pedras enquanto pés não mais tateiam e se enterram nelas. Permanece o desejo por essa dança que habita os escombros do Ocidente.
Celebração
Resta-nos agradecer e celebrar os caminhos e as travessias de todos esses corpos que buscam e criam outras danças, que desconfiam de uma ideia única e totalizante de dança, desconfiam de uma estética hegemônica da dança. Percebem o quanto a monocultura torna estéril a terra que nos possibilita dançar. Fortalecê-los em suas buscas e travessias é fortalecer a própria dança. Eis a importância de uma mostra como esta.
Talvez estejamos vivendo a morte de certa ideia de dança. E tudo bem. O sol morre todo dia no oeste, e não tem nada de triste nisso, é a condição para estarmos vivos. Curioso que este mundo que se nomeou ocidental, justamente ele, tenha tanta dificuldade de se relacionar com a noite, e consequentemente também nós, que o habitamos. Assim criamos artifícios para prolongar o dia, eternamente. Drenando energia dos nossos mundos vizinhos.
Por fim, cabe a nós, artistas, produtores, curadores e todos que trabalham com dança, refletir: onde ainda na nossa prática estamos apegados ao eterno dia de certa ideia de dança, que nos rouba tanta energia e potência criadora, impedindo que a noite venha com seus mistérios, incertezas, descansos, sonhos e por fim, o início? A aurora.
Daniel Fagus Kairoz vive e trabalha em São Paulo (SP). É bacharel em comunicação das artes do corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e, desde 2014, coordena o Terreyro Coreográfico, encruzilhada entre coreografia, arquitetura e cosmopolítica em que cria projetos de cultivo da dimensão pública dos espaços das cidades.