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Sobre Nise da Silveira e o ateliê de Engenho de Dentro

Como Nise da Silveira transformou o ateliê de Engenho de Dentro em um marco na psiquiatria brasileira

Publicado em 28/12/2016

Atualizado às 17:39 de 11/08/2020

Por Carlos Costa

Nise da Silveira (1905-1999) e sua trajetória compõem uma narrativa singular sobre ciência, política e arte no Brasil do século XX que será contada em uma das mostras que o Itaú Cultural prepara para 2017.

Nascida em Alagoas, entrou aos 15 anos na faculdade de medicina na Bahia, única mulher da turma. Formou-se em 1926 e foi viver no Rio de Janeiro, onde se especializou em psiquiatria e foi aprovada em concurso público no Hospital da Praia Vermelha.

Durante o Estado Novo, trabalhando no hospital, foi delatada por uma enfermeira por possuir livros comunistas, sendo presa e perseguida. Depois da prisão, optou por um autoexílio no Nordeste até a anistia, em 1944.

De volta ao Rio de Janeiro, por não aceitar o tratamento de pacientes psiquiátricos com métodos agressivos (como lobotomia, eletrochoque e choque insulínico), se voltou para a terapia ocupacional e fundou uma seção de terapêutica em um hospício no bairro de Engenho de Dentro.

Era 1946. O hospício se chamava Centro Psiquiátrico Nacional (depois, Centro Psiquiátrico Pedro II; hoje, Instituto Municipal Nise da Silveira). A seção foi nomeada de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (Stor) e se desenvolveu em diversos núcleos de atividades.

Com o tempo, as oficinas de pintura e modelagem se destacaram pela qualidade e quantidade do material produzido. O principal objetivo desses ateliês era estimular a expressão dos frequentadores.

O afeto entre frequentadores, monitores e médicos era uma ferramenta essencial. Afeto catalisador foi o nome que deu a essa força que vincula equipe e pacientes e, para marcar ainda mais essa diferença na relação, deu aos pacientes um nome mais adequado: clientes.

Sobre o trabalho nos ateliês, a doutora considerava que, apesar da importância estética, o material produzido representava o drama psíquico vivido pelos clientes e era essa questão científica levantada pelo trabalho, o aspecto humano, que deveria motivar o terapeuta-pesquisador.

70 anos de atividade

Em 2017, o ateliê do Museu de Imagens do Inconsciente (MII) de Engenho de Dentro completa 70 anos de produção e de um labor cuidadoso para, por meio da expressão em imagens, estabelecer um diálogo que possibilite aos clientes uma vida melhor.

Hoje, há 52 clientes nas oficinas do ateliê. A equipe de trabalho é pequena – são seis pessoas e alguns pesquisadores. A reforma psiquiátrica trouxe mudanças. A maioria dos clientes não são mais internos e alguns deles, além do trabalho no ateliê, fazem psicoterapia.

No Catálogo Arte e Solidariedade MII, publicado em 2009, um registro contemporâneo: “Hoje, uma pequena equipe mantém os ateliês terapêuticos em funcionamento para receber os usuários que diariamente criam novos documentos plásticos e compartilham suas experiências no convívio com jovens estudantes, pesquisadores ou visitantes que por lá passam, técnicos, funcionários e animais coterapeutas. A experiência nos ateliês comprova a eficácia do método terapêutico utilizado e está em conformidade com a luta antimanicomial. Mantendo suas portas e janelas sempre abertas, sem delimitações de território e de talento, aposta na criatividade e na liberdade individuais como fatores fundamentais para o exercício da cidadania. Como resultado dessas práticas, os ateliês configuram um campo multidisciplinar de aperfeiçoamento e especialização profissional; oferecem à sociedade contemporânea a possibilidade de diversas leituras das riquezas interiores do ser humano, contribuindo para a mudança dos paradigmas estigmatizantes sobre os portadores de sofrimento psíquico”.

A história da Stor

Voltando no tempo, no mesmo ano em que foi fundado, o ateliê foi palco da primeira exposição de trabalhos dos clientes. Almir Mavignier (1925-), artista carioca radicado na Alemanha, foi nome central nessa fase. Trabalhou com Nise na Stor por cinco anos como monitor de pintura e modelagem.

Nise levou a ciência e a arte brasileiras ao cenário internacional. Mostrou que na loucura há muito o que se aprender para a vida. E trouxe para o centro um dos mais periféricos personagens de nossa comédia, o louco, nosso igual a quem direitos e assistência não são garantidos.

Mas não foi da noite para o dia que essa história foi escrita. A segunda exposição do trabalho do ateliê ocorreu, em 1947, no prédio do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, a terceira exposição, 9 Artistas de Engenho de Dentro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Masp/SP), com curadoria de Mário Pedrosa (1900-1981) e Leon Degand (1907-1958), se tornaria um marco histórico.

Eram os nove artistas – Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emydgio de Barros, José (sobrenome desconhecido), Kleber Leal Pessoa, Lúcio Noeman, Raphael Domingues, Vicente (sobrenome desconhecido) e Wilson Nascimento – expostos em 179 desenhos, pinturas e esculturas. E o debate dos críticos de arte Mário Pedrosa e Quirino Campofiorito (1902-1993) sobre o valor artístico das obras produzidas por pacientes psiquiátricos exilados da sociedade nos manicômios projetava o trabalho de Nise.

Em 1950, no I Congresso Internacional de Psiquiatria, em Paris, ocorreu a primeira exposição internacional do material do ateliê. Em 1952, o trabalho se consolidava com a abertura do MII, que tem atualmente um acervo de mais de 360 mil trabalhos e – diferentemente de outros acervos similares – tende ao infinito por ser composto de todo processo de expressão dos clientes, dos rabiscos aos desenhos finais. O MII está diretamente ligado aos ateliês produzindo a cada dia novos documentos plásticos.

O cotidiano do ateliê permitiu a Nise desenvolver pesquisas e organizar exposições que fundamentaram e comprovaram a eficiência do tratamento e circularam dentro e fora do país.

As mandalas, os arquétipos e Jung

Para continuar a história, é hora de apresentar mais um personagem, um dos pilares do pensamento de dra. Nise: Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra suíço, influente pensador da contemporaneidade. Jung estudou o homem, seus processos internos e seus símbolos, desbravou caminhos para a compreensão dos abismos da mente humana e revelou a importância dos sonhos e de se relacionar com eles para uma vida melhor.

Nise percebeu entre os clientes uma considerável produção de mandalas – diagrama de formas geométricas concêntricas, com funções e significados para culturas e religiões orientais e identificado por Jung como representação simbólica da totalidade psíquica.

Nise resolveu escrever para Jung. Era 1954 e, assim, introduzia na América Latina a psicologia junguiana. “Será suficiente referir que foi o aparecimento espontâneo de mandalas e de temas mitológicos na pintura de esquizofrênicos que nos conduziu à psicologia de C. G. Jung.” (Terapêutica Ocupacional – Teoria e Prática, Nise da Silveira, 1966, Casa das Palmeiras).

Outra descoberta importante na produção dos clientes foram representações arquetípicas. Nise observou que os arquétipos, que do inconsciente coletivo emergem como relâmpagos nas visões de poetas, de pintores, estão no conteúdo avassalador das psicoses. E, da mesma forma que surgiam em obras criadas ao longo da história da humanidade – passando por pinturas rupestres, produções artísticas de diversos períodos, mitologias, contos de fadas ou relatos esotéricos –, estavam presentes nos desenhos e nas esculturas dos clientes de Engenho de Dentro. Um DNA do inconsciente humano.

A evolução do trabalho

A produção do MII foi levada para a exposição Artes Primitivas e Modernas Brasileiras, no Museu de Etnografia de Neuchatel, na Suíça, em 1955. Em paralelo, em sua casa no Rio de Janeiro, Nise começava informalmente com amigos o Grupo de Estudos C. G. Jung. No MII, foi formado outro grupo de estudos, que até hoje se reúne toda terça-feira.

Em 1956, o museu inaugurou novas instalações e recebeu visitas de professores europeus. Nise fundava a Casa das Palmeiras, clínica pioneira em reabilitação para doentes mentais em regime de externato, com uso de atividades expressivas como principal método terapêutico – décadas depois, esse seria o mote da luta antimanicomial. Este ano, a Casa das Palmeiras comemora 60 anos e segue em atividade com frequência de duas dezenas de clientes e diversas dificuldades.

Outra exposição foi inaugurada, em 1957, em Zurique. Durante o evento, Nise apresentou aos participantes a conferência Experiência de Arte Espontânea com Esquizofrênicos num Serviço de Terapia Ocupacional e se aproximou ainda mais dos estudos junguianos com uma bolsa no Instituto Carl Gustav Jung, iniciando o processo de análise com uma das colaboradoras principais do psiquiatra suíço, Marie-Louise von Franz. Durante esse período, organizou uma exposição em Paris, na qual Fernando Diniz, cliente de Engenho de Dentro, foi premiado.

Em 1961, por meio de decreto presidencial, foram instituídos o Museu e a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (Stor) em Engenho de Dentro, em reconhecimento ao trabalho de Nise, que seguia com batalhas em outros campos, como a luta pelos animais como ferramenta terapêutica e combatendo o uso considerável de medicamentos, a “camisa de força química” e o aumento de confinamento de clientes. O presidente em exercício, Jânio Quadros, renunciou dias depois da publicação do decreto e, como registrou Nise, “tudo continuou como antes” (Terapêutica Ocupacional – Teoria e Prática, Nise da Silveira, 1966, Casa das Palmeiras).

A Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente (SAMII) foi fundada em 1974 e se tornou uma ferramenta essencial para a manutenção do trabalho do MII e do ateliê, congregando a colaboração de diversos interessados no tema.

A aposentadoria

Em 1975, ano da aposentadoria de Nise, outra exposição movimentou no cenário artístico o legado do ateliê de Engenho de Dentro, Imagens do Inconsciente, que celebrava o centenário de nascimento de Jung no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e fez itinerância por outras capitais brasileiras. A produção dos clientes manteve repercussão em mostras, livros e outras ações. E o Stor seguiu suas atividades.

Em 1981, museu e ateliê foram transferidos para o edifício onde estão até hoje. Obras do acervo entraram na XVI Bienal de São Paulo, no módulo Arte Incomum. O curador geral era Walter Zanini (1925-2013) e cuidaram desse recorte os curadores Annateresa Fabris (1947-) e Victor Musgrave (1919-1984), que selecionaram trabalhos de Adelina, Emydgio e Raphael, entre outros 32 artistas.

Em 1987, os 40 anos do ateliê de Engenho de Dentro foram tema da exposição Os Inumeráveis Estados do Ser, com curadoria de Anna Letycia (1929-) e Luiz Carlos Mello (1951-). O título deriva de uma frase do surrealista francês Antonin Artaud (1896-1948), outro pilar do pensamento de Nise. A mostra passou pelo Rio de Janeiro, por Belo Horizonte e por São Paulo. Seguiram-se outras exibições, livros, filmes e até escola de samba homenageou Nise da Silveira e seu trabalho (1997, Acadêmicos do Salgueiro com o enredo “De Poeta, Carnavalesco e Louco, Todo Mundo Tem um Pouco”).

Em 1999, no Rio, 30 de outubro, Nise morreu. No ano seguinte, seu trabalho e seus clientes ganharam projeção no módulo Imagens do Inconsciente, da Mostra do Redescobrimento. Um dos trabalhos finais de Nise, o módulo teve curadoria dela e de Luiz Carlos Mello e recebeu prêmios de crítica e público.

As mostras continuaram e, em 2003, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aprovou o tombamento das principais coleções do MII (128.909 obras).

Em 2015, a Editora Vozes reeditou a obra mais representativa do legado de Nise da Silveira, o livro Imagens do Inconsciente, escrito após a aposentadoria da médica, no qual ela conta e reflete sobre o trabalho dos ateliês. Lançada originalmente em 1981, a obra teve outras quatro edições e é ilustrada com trabalhos dos clientes acompanhados por Nise e equipe. No mesmo ano, o arquivo pessoal de Nise, guardado no MII, foi reconhecido pelo Programa Memória do Mundo – Comitê Regional da América Latina e Caribe da Unesco.

No cinema, Nise da Silveira foi tema de Olhar de Nise – a Psiquiatra das Imagens do Inconsciente (Jorge Oliveira, 2015), que mescla entrevistas e ficção, com Mariana Infante no papel da psiquiatra. E da ficção Nise – o Coração da Loucura (Roberto Berliner, 2016), com Glória Pires no papel de Nise, que conta a chegada da psiquiatra ao Centro Psiquiátrico Nacional e o começo de seu trabalho com arte e terapia. Os filmes foram premiados em diversas mostras e seguem em circulação.

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