Cleiton Pereira, fundador e diretor do Contadores de Mentira, conta a história do grupo e compartilha os desafios assumidos na gestão de espaços feita pelos próprios integrantes de coletivos
Publicado em 03/07/2018
Atualizado às 19:23 de 26/09/2018
Sediado em Suzano há mais de 20 anos, o grupo teatral Contadores de Mentira resiste com grande determinação à possibilidade de deixar a cidade rumo a São Paulo. Convidamos seu fundador e diretor, Cleiton Pereira, para nos apresentar a história do Contadores de Mentira e compartilhar os desafios assumidos na gestão de espaços feita pelos próprios integrantes de grupos e coletivos.
Machismo, preconceitos, racismo e a construção de políticas públicas para uma cidade como Suzano são alguns dos assuntos da conversa. O grupo, em redes internacionais e nacionais, caracteriza-se por uma produção artística muito flexível e transmutante – que, por sua vez, permite a diversidade no repertório.
Além de fundador e diretor, Cleiton Pereira é atuador e gestor do Contadores de Mentira. Autor do livro Antes que a Margem Vire Beira – Contadores de Mentira 20 Anos, é militante cultural e atuante no teatro desde 1987.
O Contadores de Mentira tem mais de 20 anos de existência. Pensando nos próximos dez anos, quais são os principais desafios que se apresentam ao grupo no que diz respeito a sua gestão e sua sustentabilidade?
São 23 anos optando por não fazer o êxodo para a capital e, portanto, lutando em movimentos que olham para o interior e as periferias, por políticas públicas que pensem de maneira sensível a produção do interior, do litoral e da Grande São Paulo. Estamos falando de reparação histórica do Estado, que concentrou todos os recursos na metrópole. Somos desses grupos que optaram em criar identidade a partir de uma forma própria de organização e gestão. Em nossa região, estamos pisando terras inóspitas, nas quais a pressão de uma terra “coronelizada” e ausente de políticas públicas poderia facilmente destruir qualquer ação ou movimento cultural. O que fizemos nestes anos todos foi criar um contrafluxo e insistir na região do alto Tietê.
Organizamo-nos em coletivos, criamos as primeiras temporadas, os primeiros espaços culturais. Tudo isso serviu, de certa forma, de contágio positivo a outros coletivos que foram surgindo depois de nós. Organizamo-nos a partir de características de uma microcultura que possui suas próprias maneiras de sobreviver.
Um grupo como o nosso certamente aprende cedo que é necessário se organizar para achar saídas de sobrevivência e, paradoxalmente, aprender a sobreviver sem recursos. Somos uma instituição cheia de camadas e ocupamos essas camadas com projetos que se interligam com nossas convicções de sociedade. Vieram editais com os quais foi possível aguentar algum tempo a mais. Tudo o que ganhamos virou função pública: pagou o aluguel de nossa sede, que oferece bens públicos, ações para coletivos, e mantém vivos outros grupos além do nosso. Recebemos em nosso espaço mais de 300 coletivos em cinco anos de história. Com todos os editais com os quais fomos contemplados, fizemos o possível para dividir o bem comum. Afinal, tais recursos são públicos e devem voltar para a sociedade.
É complexo para nós planejarmos algo para além de um ano. Nossos planejamentos lidam com a situação de olhar para o futuro e manter firmes as convicções, porém com ações da conjuntura atual. Nestes anos todos tivemos uma capacidade incrível de nos mantermos firmes, e isso fortaleceu nossa instituição. No entanto, um grupo de 23 anos transmuta suas estratégias para lidar com as mudanças do mundo. Neste exato momento, caminhamos para o encerramento das atividades de nosso espaço e lançamos uma pergunta pública para nossa região: “Quais são as perspectivas para que uma instituição ativa e com o nosso histórico se mantenha nos próximos anos?”. Estamos provocando debates públicos para que venham à tona não só o nosso trajeto até agora, mas o que nossa estada na região onde temos residência pode gerar nos próximos anos. Pensamos que a única maneira de seguirmos é com um território onde não tenhamos que pagar aluguel, o que significa pensar espaços públicos que possam ser ocupados por instituições como a nossa. Sem essa etapa, não conseguimos projetar estratégias no longo prazo. Se acrescentarmos a isso o fato de que estamos passando por um momento histórico conservador e devastador, mirar o futuro não parece muito promissor. Quanto mais inóspito o ambiente, mais o sentido de sobrevivência nos toma conta. Assim tem sido nestes 23 anos.
Nossa arte é pública e dedicada ao acesso, à cidadania, à transformação social e aos seres humanos. Somos atuadores sociais e políticos. Nossas armas e ferramentas estão no teatro e são, de fato, muito potentes, capazes de nos devolver a vida. Arte pública é para nós uma opção. Nosso espaço é público, o que dizemos é público, o encontro é público. Não sei bem dizer como conseguimos pagar as contas e sei bem dizer o quanto o esforço é descomunal. Não cobramos do povo, mas, sim, da política pública. O que fazemos é olhar para os problemas crônicos de nossa região, de nosso país, do mundo.
Desde sua criação, o grupo sempre esteve localizado na cidade de Suzano. Em 2013, seu galpão foi lacrado pela prefeitura. É perceptível a fragilidade encontrada por muitos grupos. Em São Paulo, por exemplo, Pedro Granato, do Movimento dos Teatros Independentes (Motin), elaborou a Cartografia dos Teatros de São Paulo, que nos revela que a maioria dos espaços não está com a documentação de acordo com a legislação. No seu ponto de vista, qual seria o caminho viável para pensar na solução desse problema?
Territórios culturais exercem funções abrangentes e, em algumas cidades, são responsáveis por manter viva a cultura local. São espaços que desempenham ações que o Poder Público não consegue ou não tem interesse em acessar. Esses espaços exercem uma camada de relações íntimas, construindo identidades ao seu redor para além do gosto médio. São espaços políticos pulsantes e potentes que geram produção, militância, agregam, fortalecem a identidade local e, com isso, geram redes colaborativas além de suas fronteiras.
Nosso espaço físico vive sempre em constante ameaça. Já vimos muitos espaços abrir, mas vimos muito mais espaços fechar as portas. Trabalhamos com a bilheteria colaborativa, com a ideia de que não só nosso grupo, mas também a sociedade são coautores de nossa existência. É uma responsabilidade conjunta com a sociedade. Mas isso também não é suficiente.
Precisamos pensar a cidade de maneira ampla. Pensar novos territórios significa também pensar outras formas de convívio, outras formas de gerar e manter espaços agregadores dos quais fazemos parte. Há anos apresentamos estratégias ao Poder Público e à iniciativa privada. É possível abater impostos, ceder locais ociosos em regime de comodato ou cessão pública, é possível criar linhas de financiamento para que uma instituição sem fins lucrativos possa adquirir seu imóvel.
Acreditamos e lutamos por políticas que fomentem territórios culturais existentes há muitos anos, mas também por aquelas que possam incentivar o surgimento de novos espaços. Tudo isso significa pressão política e ações que vão além dos mapeamentos. Não há critérios, não há leis, não há políticas estruturantes que pensem cidades humanizadas. O espaço para a cultura independente diminui.
Em Suzano, por exemplo, a própria prefeitura – que lacrou nosso espaço de maneira violenta – não possui alvará em muitos de seus prédios públicos. Hoje, somos um dos raros espaços culturais que possuem alvará de funcionamento, mas isso nos custou muito esforço de tempo e finanças. Em muitas cidades do interior, grupos são despejados ou enfrentam batalhas históricas de sobrevivência. O que estamos discutindo são espaços que possam cumprir a tarefa de mediação com a sociedade e que tenham convicções muito mais amplas do que o “gosto médio” que o mercado nos impõe.
A respeito da produção artística do grupo, quais são as principais linhas de pesquisa e como são pensados os processos de formação? Existe alguma relação direta com a cidade de Suzano?
Nosso sentimento de trabalho diário é o de recusa. Recusamos o automatismo, o ódio, o conservadorismo e a opressão. Nos últimos dez anos, produzimos três obras, e todas de alguma forma dialogam com aqueles que são oprimidos. Em Curra – Temperos sobre Medeia, tratamos o mito a partir dos terreiros e das divindades orixás. O Incrível Homem pelo Avesso aborda os conselheiristas e a Guerra de Canudos, em que a República do Brasil dizimou 25 mil pessoas. Em Coma-Me – o Estado de Revolta, os temas são os muros, o fascismo, o ódio e o genocídio brutal contra todas as minorias políticas. Nossa próxima obra, Adiós Paraguai, fala sobre a Guerra do Paraguai, na qual o Brasil foi responsável por um genocídio sangrento jamais visto na América Latina.
Todas essas obras percorrem o passado e a memória histórica. E do outro lado está a nossa necessidade contemporânea de nos reconhecermos nesses temas a partir dos confrontos atuais. Vivemos nessa linha de tensão da memória e do contemporâneo. Tudo o que fazemos é uma teia que envolve criação, pedagogia e sociedade. Essa pedagogia é transformada em seminários, demonstrações de trabalho, oficinas, vivências e muitas rodas de conversa.
Nosso espaço está situado ao lado de uma linha de trem – e não há como ignorar isso em nossa criação. Quando pensamos em realizar oficinas em nosso espaço, sempre nos deparamos com a responsabilidade de evitar reproduções daquilo que fazemos, embora seja inerente e natural que aprendizes se deparem ou se misturem com nossa própria história e soluções do fazer cultural. Encararmos nossa posição de mestres nos exigiu anos de maturação para que nossas inquietações fossem compartilhadas de forma pedagógica. Entendemos que, se quisermos discutir política, ela deve estar inserida em ações de formação e multiplicação, além, é claro, de nossa postura, militância e construção da obra artística.
Há no grupo uma natureza de criação que evoca quase sempre nossos ancestrais. Partimos da natureza histórica, tentando desenterrar ossos que possam nos sustentar ao longo do processo de criação. Não temos pressa e não isolamos um trabalho do outro. É um caminho que liga um percurso ao outro, dando continuidade e transformando a obra ao longo dos anos. Trabalhamos com três eixos: metáfora, rito e celebração. Tentamos ampliar a ideia dos sentidos, pensamos todo o tempo no espectador e a ele dedicamos o espaço de coautor da obra. Visão, tato, sinestesia, paladar, olfato, memória, memória intelectual e até o sentido mediúnico passam por nossos treinamentos. Ficamos muitas horas nas salas de treinamento procurando o estalar dos ossos.
Em algum momento na construção de nosso grupo percebemos, nas manifestações populares, nas rezadeiras, nas celebrações religiosas, nos terreiros, nas danças orientais, um fenômeno que nos tocava. Era o resultado de uma série de perguntas que ainda fazemos para justificar algumas de nossas escolhas. Em alguns anos observamos uma dramaturgia em nosso corpo, às vezes estranho à formação tradicional de atores, mas com capacidade criativa inerente. Percebemos que era possível celebrar o tema, e não apenas interpretá-lo na dramaturgia da razão. Optamos ao longo do tempo por celebrar a relação entre público, artistas, obra e instante. Encontramos nas tradições também a ideia de que nosso ofício é próximo ao do artesão. Adentramos para a construção de uma obra sem rejeitar nossa própria existência, a biopolítica e nosso contato com o mundo.
No repertório do Contadores de Mentira, entre os muitos espetáculos está Curra – Temperos sobre Medeia, que em 2018 está completando dez anos de realização. Como é para o grupo trabalhar com essa obra por tanto tempo, considerando os dias atuais, em que tudo muda com uma velocidade inalcançável?
Curra – Temperos sobre Medeia é nossa tese. É necessário envelhecer como grupo e envelhecer por meio de uma obra. Assim mantemos o nosso aspecto de tradição. O corpo que se modifica, os temas que atravessam a obra, as relações que se transformam são essenciais para um teatro vivo. Estamos ouvindo os movimentos sociais e, claro, somos atravessados por temas dolorosos de opressão, preconceito, ódio, intolerância. Nossas obras não estão alheias a isso, talvez por isso elas durem tanto tempo. Não são cristalizadas e quase sempre passam por uma espécie de processo de profanação daquilo que criamos. De tempos em tempos, procuramos incoerências entre nossos discursos e revisamos aquilo que estamos pensando.
Se quisermos nos manter vivos como grupo de teatro, devemos, no mínimo, ser sensíveis aos acontecimentos. São muitas “Medeias” e “Marielles”, são muitas mulheres negras sendo assassinadas, são muitas questões de machismo e ódio contra a cultura afro-brasileira. Outro aspecto fascinante é o fato de que, ao fazer essa Medeia há tantos anos, vamos descobrindo detalhes escondidos que vão transformando essa obra em um espaço para um corpo pleno. O tempo permite encontros inimagináveis.
Como vocês trabalham a questão da memória, tanto nos aspectos físicos (manter os figurinos, os conteúdos da TV Contadores de Mentira etc.) quanto nos desafios de atualização dos assuntos que são retratados nas peças?
Temos um grande acervo de imagens, vídeos, publicações, jornais, revistas e outros materiais gráficos, acumulados por um grupo ativo em muitas camadas. Ao longo do tempo tentamos dar conta de digitalizar o acervo e organizá-lo para consultas futuras. Quando olhamos para todo esse material, percebemos o caminho que traçamos nestes anos todos. Confesso que faltam em nosso grupo pessoas com essa capacidade de organizar o material de forma a permitir o acesso histórico de 23 anos de atividade.
Parte desse material está se transformando em um filme chamado Quebrai-Me – Apoteose de uma Utopia Estirada ao Limite da Morte, que narra de forma poética e documental o percurso de nosso grupo.
Assim como as temáticas das obras se transformam com o tempo, acontece o mesmo com figurinos e cenografia. Na verdade, tudo se transforma e faz seu rito de passagem. Reaproveitamos muito material. Nosso acervo é enorme, mas ainda não chegamos ao ponto de organizá-lo para que o público possa ter acesso.
Temos um olhar na história e outro no contemporâneo. Vivemos nessa pequena linha de tensão entre o passado e o futuro. Todo o tempo nos transubstanciamos e tomamos posições sociais e políticas. Nossas obras são um reflexo de nossas mudanças.
Vocês já receberam na sede do grupo importantes nomes do cenário teatral internacional, como Eugênio Barba e Julia Varley, do Odin Teatret. Também circulam em eventos fora do Brasil e na América Latina. Qual é o balanço que você faz dos impactos para o grupo dessa articulação em redes?
Já estivemos no Peru, no México, em Cuba e no Equador. Neste ano vamos para a Argentina, além de termos propostas de encontro na Bolívia, no Chile, na Colômbia e na Índia. Tudo começou em 2014, com um projeto que criamos chamado Ofício e Raízes. Na primeira edição do intercâmbio, o encontro foi em nossa casa, com o mestre Eugênio Barba e a atriz Julia Varley, do Odin Teatret, grupo residente em Holstebro, na Dinamarca, que naquele ano comemorava 50 anos.
A segunda edição aconteceu em 2015, com o grupo Contraelviento Teatro Al Margen, em uma pequena zona rural chamada La Merced, em Quito, no Equador. Esse intercâmbio estabeleceu um forte elo entre nós, e seguimos nos encontrando, às vezes no Brasil, às vezes no Equador, produzindo juntos, trocando pesquisas e práticas e buscando conexões. Em 2017, realizamos uma coprodução chamada Rumi – la Marcha de los que se Van, viabilizada por meio do fundo internacional Fundo de Ajuda para as Artes Cênicas Ibero-Americanas (Iberescena).
A terceira edição foi no Peru, a convite dos grupos Fusion Teatro e Yuyachkani. Ali conhecemos também os grupos Maguey e Quatro Tablas. Mais uma vez a ideia de construir uma pequena ponte artesanal, e atravessá-la, criou em nós um sentido ainda mais profundo com a luta de teatro de grupo e o povo latino-americano.
Hoje podemos dizer que conhecemos e temos relação com mais de 300 grupos espalhados na América Latina e no Brasil. Somos uma microcultura que tenta dar as mãos a outros coletivos humanos. Grupos cujas escolhas pessoais e acontecimentos históricos transformam a matéria do teatro. Grupos que vivem a discriminação pessoal ou cultural, profissional, econômica e política.
Há tempos adentramos e criamos redes colaborativas com grupos parceiros. Essas redes nos ajudaram a encontrar criadores que vivem experiências de resistência, e quanto mais percorremos percebemos que há muitas histórias que se confundem no Brasil e na América Latina. Com a força adquirida com outros guerreiros, voltamos para nossa cidade, oxigenados e fortalecidos.
Hoje qual é o principal desafio para o grupo pensando nas políticas culturais? Ou na ausência delas?
O principal desafio será o de manter-se firme pelos próximos 10 a 20 anos. O país e a América Latina estão sangrando e não há quem nos defenda. Tudo está se perdendo no conservadorismo e no neoliberalismo. Não vejo saídas e, infelizmente, estamos perdendo muitas possibilidades de diálogo. A briga agora vai além das políticas públicas. Teremos que nos defender para continuar produzindo e teremos que fazer o mesmo para nos manter vivos. Para um grupo como o nosso, o desafio é não desatar os nós construídos em tantas redes que nos apoiam. Estamos tecendo nós e nos fortalecendo por meio do ofício e da reciprocidade. Não estaríamos firmes se não fossem esses laços, trançados na complexidade de nossa profissão e na convicção de algumas escolhas. Frei Beto esteve em nosso espaço e nos provocou dizendo que “deixemos o pessimismo para dias melhores”. Assim, estamos construindo nossa história, pois, se acreditamos de fato naquilo que fazemos, este é o momento.