Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Todo mundo tem sotaque!

Em seu terceiro texto para o site do Itaú Cultural, as críticas de teatro Ivana Moura e Pollyanna Diniz falam sobre como o sotaque pode virar alvo de exclusão e xenofobia

Publicado em 27/05/2021

Atualizado às 14:39 de 05/10/2022

Por Ivana Moura e Pollyanna Diniz

Oxi, uai, tchê, meu, aê, égua! Todo mundo tem sotaque! Óbvio, não? Nem sempre! Como já dizia o filósofo francês Jean-Paul Sartre, que não acreditava em Deus, o inferno são os outros. Muitos embates levam a presumir que quem tem sotaque é o próximo (ou o distante). Mas, antes de entrar no território de quem são os outros, vamos abraçar essa ideia de sotaque. Alguém poderia dizer que esse assunto é complicado e é melhor não mexer em casa de marimbondos, porém a gente arrisca meter a mão na cumbuca.

Veja também:
>>
Cena agora conclui ciclo sobre um Nordeste plural com oito cenas teatrais de 15 minutos
>>Existe um teatro nordestino?
>>
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar

Sotaque é um “jeitinho” de um falante pronunciar fonemas num idioma ou grupo de palavras. Varia de acordo com região, classe ou grupo social, etnia, sexo, idade ou indivíduo, em qualquer grupo linguístico. Revela-se nas alterações de ritmo, entonação, ênfase ou distinção fonêmica. Pode se referir a diferenças dialetais em um mesmo idioma ou até à pronúncia imperfeita de um idioma articulado por um estrangeiro.

Conta-se que o escritor português José Saramago (1922-2010), numa palestra que fez numa universidade brasileira, negou que tivesse sotaque. Simples assim! Ele foi abordado por um ouvinte, que pleiteava que o autor de Ensaio sobre a cegueira (1995), Ensaio sobre a lucidez (2004) e As intermitências da morte (2005), entre outras obras, falasse mais devagar, pois muitos não conseguiam acompanhar a explanação por causa do sotaque. Surpreendido com a situação, Saramago retrucou dizendo que quem tinha sotaque eram aquelas pessoas da plateia. Uma percepção parcial do galardoado escriba.

Muro branco com números de 1 a 12 pintados de vermelho. Bem no centro há um 7, também vermelho, e a frase Fronteiras traçadas determinam diferenças, escrita em preto.
"Pequeno inventário das afinidades nordestinas" levanta questões e traça percepções que podem alimentar o pensamento crítico sobre nordestinidades, sotaques, poder, capitalismo (imagem: divulgação)

Na terra da longeva soberana Elizabeth II, inventaram uma linguagem das elites chamada RP, uma pronúncia “impecável”, “o inglês da rainha”. Para ter uma ideia da pompa desse padrão da língua, desde a primeira reportagem de rádio da BBC no Reino Unido, em 14 de novembro de 1922, até bem pouco tempo atrás, o tom era esse. A BBC atualmente aceita os diversos sotaques regionais, mas predomina uma tendência de que há sotaques “confiáveis”, como o da rainha, e os outros. Essa palavra, confiável, é importante para entender e desvendar muita coisa.

E o nosso balaio de gatos?

Não sabemos se é mais complexo do que em outros lugares do mundo, mas a nossa história deveríamos conhecer muito bem e para além da versão oficial dos colonizadores/opressores/europeus. Vamos lá, firmeza. No Brasil, esse engendramento de sotaques tem muitas camadas, que foram encobertas ou apagadas. A formação deste país é uma história de lutas e violências, que deixaram marcas até hoje.

Quando os europeus chegaram por aqui, existiam cerca de 1.500 línguas faladas no território. O “homem branco”, com sua ganância de dominação, conseguiu extinguir a maioria delas. Oitenta e cinco por cento das línguas originárias desapareceram junto com seus povos, dizimados por doenças trazidas pelos colonizadores e pelo extermínio direto. Atualmente, o país conta com apenas 181 línguas indígenas, segundo uma pesquisa de 2016 feita pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/Unicamp). O mais grave é que todas as línguas indígenas vivas no Brasil estão ameaçadas de extinção em algum grau, de acordo com o Atlas mundial das línguas, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). É um percurso sangrento, de brutalidade histórica da tirânica lógica branca, que atingiu e feriu principalmente os povos originários e os negros forçosamente trazidos da África escravizados.

A canonização de uma linguagem excludente que despreza o aspecto mais popular e coloquial foi combatida pela filósofa Lélia Gonzalez. A intelectual e militante negra avaliou que o português falado no Brasil estaria ajustado com suas raízes se fosse chamado de pretoguês. Uma língua dançante e vivaz, repleta de sinuosidades, molejos e riqueza. Lélia defendeu a potência do legado linguístico das línguas africanas no português falado no Brasil, sobretudo na questão da oralidade:

[…] aquilo que chamo de “pretoguês” e que nada mais é do que marca de africanização no português falado no Brasil […]. O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes, como o l ou o r, por exemplo, apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, jan./jun.1988).

A filósofa nos lembra que nossa libertação pode vir da confluência de saberes dos ancestrais africanos e dos povos indígenas.

Além destes, algumas correntes migratórias de vários povos contribuíram para os diversos sotaques brasileiros. Italianos, alemães e pessoas do Leste Europeu influenciaram o português brasileiro falado na Região Sul. E, no Rio Grande do Sul, ainda houve o contágio linguístico do espanhol falado nos países vizinhos. A prosódia do italiano marca fortemente o timbre das populações de São Paulo.

Menos imigrantes foram para o Norte do país e, talvez por isso, o sotaque guarde preponderância das línguas indígenas. A invasão holandesa (1630-1654) e o período de Maurício de Nassau deixaram seus acentos na língua e na mentalidade de Pernambuco.

O Rio de Janeiro, capital da colônia portuguesa em 1763, sede de todo o império português (que incluía Angola e Moçambique, na África; Goa, na Índia; Timor, no Sudeste Asiático; e Macau, na China) de 1808 a 1821, capital da República até 1960, é apontado como o lugar no Brasil que mais se aproxima do sotaque português de Portugal. Essa influência é detectada pela maneira de pronunciar o “s” bem chiado, entre outras particularidades.

Em julho de 1937, o escritor Mário de Andrade (1893-1945), que ocupava o cargo de diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, organizou o Primeiro congresso de língua nacional cantada. A intenção do evento, que teve grande adesão, era estabelecer uma pronúncia-padrão, que seria utilizada no teatro, no canto lírico, na recitação e, a partir daí, se espalharia pelo país. Eles achavam que adotar uma “pronúncia brasileira culta” era importante para a construção da identidade nacional do Brasil.

Sotaque-padrão?

Como escolher um só sotaque-padrão no país diante de tanta diversidade? Para surpresa nenhuma dos leitores que nos acompanharam até aqui, o anteprojeto apresentado pela organização do congresso recomendava que esse padrão de pronúncia fosse a fala carioca. A opção era baseada nos estudos do filólogo, etimólogo, dialetólogo e lexicógrafo Antenor Nascentes (1886-1972), que escreveu O linguajar carioca e organizou uma comissão em 1930 para determinar qual deveria ser o padrão de pronúncia ensinado nas escolas primárias, profissionais e normais do Distrito Federal.

Homem negro aparece vestido com uma malha branca, em uma imagem de tela. Atrás dele, três olhos de homens aparecem como se fossem telas na parede em um cenário.
"EX-NE – o sumiço", do Estopô Balaio, é um recorte da pesquisa de cenas em território on-line do espetáculo Reset Nordeste, que desenvolve o argumento de que o Nordeste sumiu do mapa do Brasil (imagem: divulgação)

Esse episódio do congresso é explorado no experimento do coletivo Estopô Balaio EX-NE – o sumiço, um recorte da pesquisa de cenas em território on-line do espetáculo Reset Nordeste, que desenvolve o argumento de que o Nordeste sumiu do mapa do Brasil. Uma das personagens compara o sotaque “neutro” ao chiado de uma panela de pressão e diz que desde Mário de Andrade tentam nos impor um padrão fonético, “eles ficam dizendo que esse com chiadinho aí é mais evoluído e o mais civilizado”. A outra personagem declara que o sotaque é a sua militância.

Há pelo menos duas questões curiosas nesse cruzamento entre o congresso de Mário de Andrade e o Estopô Balaio: primeiro, a ideia de que a escolha de uma língua-padrão seria um elemento civilizador do povo brasileiro. Falar uma mesma língua como um atestado de civilidade. Qual seria a percepção então sobre as línguas indígenas? Além disso, a adoção dessa língua-padrão, teoricamente neutra, sem regionalismos – embora carioca, com chiado –, evidencia a busca por anular os regionalismos. Por que seria tão importante apagá-los? O que isso tem a ver com a invisibilização da subjetividade do indivíduo que faz uso dessa língua?

Quando a tirania nessa busca por uma suposta neutralidade-igualdade pode ser considerada xenofobia? Aliás, foi justamente um flagrante de xenofobia que inspirou o trabalho do grupo, que tem sede no Jardim Romano, na Zona Leste de São Paulo, mas possui muitos integrantes do Rio Grande do Norte. Depois da segunda eleição da presidenta Dilma Rousseff, mineira de nascimento, pelo Partido dos Trabalhadores, uma estudante de direito postou no Twitter: “[...] Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado”.

Metendo o dedo na ferida, mas ancorada no humor, a jornalista e atriz pernambucana Ademara Barros amplifica os preconceitos recorrendo a uma mudança na perspectiva da gozação. Será que o padrão não tem sotaque? Criou a personagem Laura Tampurini, uma repórter sudestina, que vai entrevistar uma cientista pernambucana, mas não consegue se desvencilhar dos preconceitos: “Ah, esse sotaque é uma delícia, não entendi nada do que você falou!”. Até que ponto existe uma dificuldade de entendimento dos diferentes sotaques? Ou é mais uma questão de quem detém o poder de dizer quem fala, quem ouve, o que se fala, o que se cala?

Mulher com os cabelos lisos na altura dos ombros está com fone branco no ouvido. Seus cabelos estão pintados de loiro e cor de rosa. Ela usa batom vermelho e uma camisa preta, com bordado na frente.
A jornalista e atriz pernambucana Ademara Barros amplifica os preconceitos recorrendo a uma mudança na perspectiva da gozação, através da personagem Laura Tampurini, uma repórter sudestina (imagem: divulgação)

Disputas de poder

Poética e política andam de mãos dadas nas criações do Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa, na Paraíba. Pequeno inventário das afinidades nordestinas, um experimento apresentado pelo grupo na programação do Cena agora – encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, levanta questões e traça percepções que podem alimentar o pensamento crítico sobre nordestinidades, sotaques, poder, capitalismo. Com fragmentos de lembranças e impressões de seus artistas, o trabalho põe em xeque as armadilhas do discurso dominante, a violência simbólica e as muitas teias nesse novelo de fronteiras.

Foto preto e branca. Mulher idosa aparece sentada em uma máquina de costura. Atrás dela, vemos pendurados na parede recortes de jornal e fotografias. Carretéis de linha aparecem ao lado dela.
Pequeno inventário das afinidades nordestinas, um experimento apresentado pelo Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa, na Paraíba, na programação do Cena agora – encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas (imagem: divulgação)

Entre memórias e imagens, o Alfenim, dirigido por Márcio Marciano, pergunta: com quantos atores do Sudeste se grava uma novela nordestina? Quantos sotaques existem em uma mesma cidade? Se aquilo que eu digo e como eu digo apostassem corrida para chegar ao seu ouvido, quem chegaria primeiro, o que foi dito ou o meu sotaque? E prossegue nas impertinências: o seu sotaque também tem pelúcia ou só o meu que é fofinho? Podemos falar de sotaques de outras pessoas ou isso já foi proibido?

Se não existe um sotaque melhor ou pior, por que a implicância maior com alguns? Quando o sotaque vira um instrumento de discriminação e intransigência? A resposta pode estar na palavra poder, voltamos a ela, mas esse é um processo complexo de muitas camadas de tolerância/intolerância, superioridade/subalternidade, disputas de narrativas, verdades e fake news.

Sinal de identificação, o jeito como uma pessoa fala pode gerar acolhimento ou rejeição e despertar uma série de movimentos internos e externos de julgamentos. A cearense Melissa Gurgel, Miss Brasil 2014, sofreu uma série de ofensas na internet. Um dos comentários insultuosos dizia: “Miss Ceará: bonita até abrir a boca e vir aquele sotaquezinho sofrível”.

Como chegamos a essa avaliação negativa e estereotipada dos sotaques? Essa ideia de língua-padrão é uma construção. O padrão confere mais status e alarga caminhos, facilitando os acessos do enunciador. No Brasil, atores de novelas e jornalistas de televisão são treinados por fonoaudiólogos para que “percam” seus sotaques.

O julgamento pode até ser inconsciente, mas a discriminação por sotaque desperta os sentimentos mais tacanhos de quem segrega, que contribuem para uma avaliação arbitrária, do não reconhecimento do outro e da sua capacidade. Quando alguém diz “Dou minha palavra”, está externando um voto de confiança. E confiança é uma palavra-chave para entender as falácias levantadas para condenar determinados sotaques. Os preconceitos linguísticos passam por juízos de valor sobre inteligência, habilidade, talento, empatia, capacidade de mobilização através da fala.

A lógica da discriminação por sotaque persiste na esteira da dominação, uma violência que segue na contramão da complexidade cultural. É uma tentativa de monopolizar o discurso em jogos de poderes e saberes, de cristalizar uma perspectiva única, verdade absoluta, padrão. Mais pluralidade e diferença, por favor!

Compartilhe