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Obra de Denilson Baniwa a partir da montagem de uma gravura antiga de um homem branco, sentado em uma rede e escrevendo em um papel com uma pena. Na frente da imagem há a colagem da fotografia de um indígena sentado em um pedaço de tronco e olhando para esse homem escrevendo. Ao lado dele, ocupando o canto inferior esquerdo, está escrito "o antropólogo moderno, já nasceu antigo"

Apropriações indevidas: riscos e disputas na devolução de bens culturais

Anauene Dias Soares aborda os meios alternativos no cenário internacional para a devolução de apropriações indevidas do patrimônio cultural brasileiro

Publicado em 03/11/2023

Atualizado às 11:53 de 29/12/2023

 por Anauene Dias Soares

 Resumo

Tanto o direito doméstico quanto o internacional têm se demonstrado insuficientes para coibir a apropriação indevida de bens culturais e para possibilitar as suas devidas devoluções ao local de origem, visto que essas transações sofrem influências de políticas internacionais dos Estados e de outros atores, como museus e universidades, como aconteceu com o fóssil brasileiro Ubirajara jubatus, que se encontrava no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha

Capa da Revista Observatório 36

[acesse aqui o sumário da Revista Observatório 36]

Apropriações indevidas do patrimônio cultural e suas devoluções 

O fluxo de patrimônio cultural que seguiu de ex-colônias e territórios considerados hoje como países em desenvolvimento para museus e instituições culturais públicas e privadas localizadas em países denominados desenvolvidos é reflexo da expansão do imperialismo. Após o ciclo de independência das décadas de 1950 e 1960, os novos Estados começaram a questionar (FORREST, 2002) a forma como se deu essa apropriação, iniciando, em muitos casos, uma disputa para reaver seus patrimônios culturais.

O liame lógico entre apropriação indevida e devolução de patrimônio cultural é mais que evidente. Se a apropriação dos bens se deu ilegalmente, há a obrigação de devolvê-los. Portanto, qualquer Estado responsável por um ato internacionalmente ilegal é obrigado, em primeiro lugar, a restabelecer a situação que teria existido se o ato não tivesse ocorrido (SHAW, 2017).

Diante dessas práticas indevidas, podem-se identificar algumas das várias causas das expropriações e remessas internacionais, tais como o tráfico ilícito, que pode se dar por furto, roubo, exportação, importação, escavação, remoção ou transferências não autorizadas, pilhagem em tempo de guerra ou, ainda, por apropriação ou comércio entre traficantes em tempos de colonização ou ocupação (FORREST, 2002). Assim, o primeiro a ser resolvido é se a aquisição foi ou não lícita e que efeito isso tem sobre o princípio da devolução (CORNU; RENOLD, 2010).

No contexto da colonização, por exemplo, visto que a questão da ilegalidade da apropriação não se coloca em confronto com as legislações nacionais e internacionais em vigor na época, o risco de não ocorrer a devolução é ainda maior. Nesses casos, a devolução de bens tende a se basear na necessidade de restituir o patrimônio cultural insubstituível a quem os criou não por se tratar de um ato ilegal, mas sim indevido. Já no caso das exportações ilegais, os bens são devolvidos ao Estado de origem sem que surja a questão da propriedade. Como corretamente afirmado por Pomian (2007, p. 17, tradução livre):

o que está por trás do renovado interesse na restituição de propriedade cultural nas últimas décadas é apenas uma tentativa de compensar o passado, que toca em questões históricas pendentes, como a colonização europeia, a Segunda Guerra Mundial e a discriminação contra os povos indígenas.

Como forma de elucidar também sua contribuição nos conflitos de devolução dos bens, mesmo que não haja um tratamento uniforme nos textos jurídicos, o esclarecimento do uso de terminologias atinentes à devolução de bens culturais ao possuidor ou proprietário original exige uma diferenciação entre os termos restituição, retorno e repatriação abordados por Wojciech Kowalski (2005).

Obra de Denilson Baniwa a partir da montagem de uma gravura antiga de um homem branco, sentado em uma rede e escrevendo em um papel com uma pena. Na frente da imagem há a colagem da fotografia de um indígena sentado em um pedaço de tronco e olhando para esse homem escrevendo. Ao lado dele, ocupando o canto inferior esquerdo, está escrito
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - O antropólogo moderno já nasceu antigo (imagem: Denilson Baniwa)

O termo restituição é atualmente usado principalmente para os bens culturais pilhados em tempos de guerra ou para os bens culturais roubados, sempre denotando, segundo Kowalski (2005), uma situação ilegal. Já o retorno é mais usado para bens culturais que foram deslocados em benefício do poder colonial e devolvidos ao seu país de origem e, também, para os casos de exportação ilegal. Em ambas as situações, o retorno depende mais da noção de território, enquanto a restituição, no sentido técnico, pressupõe que haja um destinatário identificado. No que se refere à repatriação, trata-se de uma forma específica de restituição, cujo destino pode variar: quer para o país a que pertence o bem cultural, quer para a etnia que o possui. O termo é mais frequentemente usado no contexto de reivindicações de povos indígenas.

Com o intuito de mitigar essas apropriações indevidas, irregulares ou ilegais, cita-se a Red List brasileira do Conselho Internacional de Museus (Icom), que é uma lista de bens culturais nacionais em risco diante do tráfico ilícito do patrimônio cultural. Ela foi lançada em fevereiro de 2023 e contou com a coordenação técnica da autora do presente artigo. Na lista, podem-se encontrar cinco categorias de bens culturais, a saber: bens arqueológicos, paleontológicos, etnológicos, religiosos e bibliográficos. Caso profissionais atuantes na área de patrimônio cultural ou mesmo quaisquer cidadãos suspeitem de alguma evasão ou alienação indevida de algum bem, eles poderão verificar na lista se o objeto é parte dessa seleção e comunicar sua suspeita às autoridades competentes, conforme indicado no documento.

Riscos normativos e estatais nas devoluções de bens culturais

Sabe-se que, mais por questões de política, países do Sul Global são membros da Convenção da Unesco de 1970, em sua grande maioria sem reservas de artigos (quando artigos de um tratado internacional não são recepcionados por determinado país). Em contrapartida, por puro reflexo das colonizações, países do Norte Global, como os da União Europeia e os da América do Norte, internalizaram a referida convenção com reservas de artigos ou nem sequer dela fazem parte.

Obra de Denilson Baniwa, no centro há a figura de um indígena deitado de costas no chão, com um arco nos pés e puxando uma flecha com as mãos, apontada para cima. A partir do ângulo formado entre o arco e a flecha, o artista incluiu faixas vermelhas simulando a representação de sinal de internet wi-fi.
Ensaio Artístico Revista Observatório 32 | Denilson Baniwa - Arqueiro digital (imagem: Denilson Baniwa)

Há, ademais, a má interpretação da normativa internacional e o aproveitamento de lacunas legais para afirmar a posse de um bem – ou a resistência colonialista em devolvê-lo pautada pelo princípio de que “a lei não retroage”. No entanto, o Comitê Intergovernamental para a Promoção de Retorno de Bens Culturais aos Países de Origem ou Sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita, de 1978, foi criado para encorajar as negociações bilaterais e ajudar os países nos casos em que as convenções não possam ser aplicadas (artigo 4o, parágrafo 1o).

Para corroborar as normativas internacionais, o glossário do Museum Security Network, de 2010, elucida que “[...] a devolução de um bem cultural pertencente a uma coleção de museu dar-se-á para uma parte que seja considerada o verdadeiro proprietário ou possuidor tradicional [...]” (tradução livre). Ao não serem compelidos a devolver tais bens, os museus europeus, principalmente, atuam apenas como agentes do mercado e do Estado, confirmando, assim, os privilégios das “nações” e instituições.

Em relação aos critérios usados nas políticas internacionais de proteção do patrimônio cultural, os estudos comparados entre os Estados-partes das convenções da Unesco, o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit) e as decisões das cortes e câmaras de arbitragem em Haia são predominantemente de visão ocidental, devido ao fato de a própria Organização das Nações Unidas (ONU) ser em sua maioria constituída por países ocidentais e pelos ditos países desenvolvidos, responsáveis pela deliberação e pela elaboração da normativa internacional (BENHAMOU, 2016).

Mesmo no caso de uma abordagem – muitas vezes influenciada pelo protecionismo eurocêntrico, ocidental – que primasse pela proteção de bens culturais pelo simples fato de engendrarem uma importância per se, independentemente da sua relevância para qualquer ser ou comunidade humana, seria ainda possível verificar o reconhecimento de um valor intrínseco, de uma certa dignidade cultural (SOARES; MARTINS, 2014). Por outro lado, soluções alternativas e plurais, em um contexto pós-colonialista, poderiam assegurar maior efetividade das normas e instituições internacionais que protejam o patrimônio cultural de um dado Estado.

Por outro lado, soluções alternativas e plurais, em um contexto pós-colonialista, poderiam assegurar maior efetividade das normas e instituições internacionais que protejam o patrimônio cultural de um dado Estado

A existência de uma rede de tráfico e comercialização de bens culturais é resultado de diferentes fatores: aspectos de natureza jurídica, com ajustes e superação de lacunas legais; as características socioeconômicas das diferentes regiões nas quais estão localizados os patrimônios culturais; recursos humanos e financeiros insuficientes para a atuação adequada dos órgãos/organismos competentes; e a baixa integração entre eles no âmbito nacional e internacional. Além de a exploração econômica dos bens culturais ser outro fator de risco, assim como as ocorrências de furto de exemplares para fins comerciais, essas atividades representam enorme risco para a pesquisa (devido à sua importância científica) e a salvaguarda do patrimônio cultural.

Outro ponto a ser considerado, no viés da natureza jurídica, é a diferença normativa entre países. Enquanto no Brasil e em outros países a exploração e a comercialização de determinados bens culturais são proibidas e com previsão em leis (ainda carecem de melhor aplicabilidade e de sua respectiva fiscalização), em outros países a comercialização desses bens é permitida. Essa dicotomia colabora para a incidência do comércio desses bens em sites e casas de leilão virtuais, dificultando ainda mais a fiscalização e gerando uma grande dispersão e dificuldades operacionais e jurídicas quanto ao comércio eletrônico de bens culturais acautelados e/ou proibidos de serem comercializados.    

Ademais, os países, à luz do direito interno, mesmo que detenham um arcabouço legislativo, seja ele voltado para a proteção do patrimônio cultural ou não, não fazem o devido uso ou aplicabilidade dessas leis. A necessidade de aprimoramento da legislação e, talvez, a criação de normas específicas que disponham sobre a apropriação indevida de bens culturais e suas respectivas devoluções também são mandatórias. Outro aspecto jurídico a ser considerado, inexistente no Brasil, é a definição dos procedimentos de fiscalização e aplicação de sanções administrativas em relação à defesa dos bens culturais.

Obra de Denilson Baniwa, no qual há uma onça vestindo uma camisa preta e está escrevendo na parede, com pincel e tinta vermelha,
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Sem título (imagem: Denilson Baniwa)

Há, também, o risco representado pelas características socioeconômicas das diferentes regiões nacionais: a desinformação, o desconhecimento da legislação e a ausência de fiscalização e punição – o que facilita o aliciamento da população local nessa rede delituosa –, bem como a insuficiência de recursos humanos e financeiros. As instituições envolvidas na fiscalização, em sua maioria localizadas em Estados do Hemisfério Sul, convivem com a falta de recursos financeiros e humanos e, além de terem um número reduzido de agentes, igualmente demandam, diante da diversidade e das especificidades do patrimônio cultural, uma equipe especializada para apoio nas operações e maior integração entre os órgãos e as entidades envolvidos no combate à apropriação de bens culturais nos países e entre os países. Neste sentido, seria importante estabelecer a interoperabilidade entre os bancos de dados de obras desaparecidas das organizações internacionais e policiais, tais como os da Interpol[1], do FBI[2] e do Comando Carabinieri per la Tutela del Patrimonio Culturale, da Itália[3].

Outro grande desafio enfrentado por alguns países, como o Brasil, principalmente no que tange ao âmbito aduaneiro e policial, é ter ou manter uma presença ostensiva ao longo de todas as fronteiras nacionais, considerando também o fator climático. A presença, em ambos os lados fronteiriços, do crime organizado voltado para transportadores, receptadores, depósitos e transportação, bem como a grande variabilidade de tipologias de bens culturais acautelados, dificulta sua identificação pelos órgãos competentes e pela comunidade, fator agravado pela carência de qualificação dos profissionais responsáveis.

Disputas nas devoluções internacionais de bens culturais

A devolução de bens culturais em âmbito internacional sempre esteve atrelada a questões de Estado e à disputa entre países (PERROT, 2005), seja para reivindicar soberania, seja para requerer um bem cultural, como ocorreu na Convenção da Unesco de 1970, mencionada acima. O surgimento de outros atores com direito a reivindicar a propriedade de certos ativos gerou novas características nessas tramitações. A questão de legitimidade desses novos atores para atuar em defesa de seus próprios interesses patrimoniais, principalmente à luz das reivindicações praticadas pelas comunidades indígenas, exige a devolução de seu patrimônio segundo o interesse coletivo.

O problema é mais complexo quando o reclamante é uma comunidade. Ainda não existe o reconhecimento legal da propriedade ou posse coletiva de bens móveis culturais não estatais no direito internacional. Na prática, tais reivindicações e devoluções são geralmente feitas por meio do Estado. O patrimônio coletivo implica uma forma diferente de propriedade, que afeta a liberdade de dispor livremente de tais bens (LIXINSKI, 2019).

De acordo com o artigo 11 da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, resolução da ONU, o povo indígena, por exemplo, tem poderes para controlar o uso do seu patrimônio cultural e para “manifestar, praticar, desenvolver e ensinar sua espiritualidade e tradições, costumes e cerimônias religiosas”, o que implica o acesso aos objetos que sustentam essas práticas. O texto, portanto, introduz um mecanismo original no estabelecimento de um direito de uso, mas a devolução não é obrigatória neste caso.

o povo indígena, por exemplo, tem poderes para controlar o uso do seu patrimônio cultural e para “manifestar, praticar, desenvolver e ensinar sua espiritualidade e tradições, costumes e cerimônias religiosas”, o que implica o acesso aos objetos que sustentam essas práticas

Essa possibilidade é mencionada ainda no artigo 11, que exige que os Estados concedam “reparação por meio de mecanismos eficazes, que podem incluir a devolução, desenvolvida em conjunto com os povos indígenas, com relação a seu patrimônio cultural, intelectual, religioso e espiritual apropriado indevidamente”, independentemente de a expropriação ter sido lícita ou não. O respeito por esses direitos pode ser logicamente garantido por meio de trocas e negociações como alternativas à devolução.

No caso de bens públicos, na maioria das ocorrências não há necessidade de promulgar uma lei para iniciar o processo de devolução. Uma decisão administrativa é suficiente para assegurar a remoção dos bens públicos ou das coleções, como no caso dos bens arqueológicos e paleontológicos brasileiros, com previsão expressa na Constituição de 1988, de modo que as devoluções possam ser efetuadas sem a necessidade de solicitar autorização ou assinar contratos diretos, prescindindo, inclusive, do uso de canais diplomáticos.

Há outro aspecto também a ser considerado: a inalienabilidade de obras e coleções de domínio público, como os bens arqueológicos e paleontológicos brasileiros. A regra de inalienabilidade tem a ver com a utilidade pública do item, uma determinação especial geralmente resultante de uma decisão administrativa ou judicial, e vinculativa até mesmo para o chefe de Estado, que não pode dispor livremente de tal bem cultural como um presente a outro Estado (CORNU; RENOLD, 2010). Um exemplo é o caso do fóssil brasileiro Ubirajara jubatus, que saiu ilegalmente do país e se encontra no Museu de História Natural de Karlsruhe, em território alemão[4].

O governo de Baden-Württemberg argumenta que, apesar de a Convenção da Unesco ser da década de 1970, a Alemanha só se tornou membro dela em 2000, e outra lei doméstica[5], Cultural Property Protection Act of 31 July 2016, na seção 32 (1) 1. b), determina que todo material levado para o país antes de 26 de abril de 2007 é considerado como propriedade do país. Como o fóssil brasileiro foi adquirido antes da entrada em vigor na Alemanha dessa convenção da Unesco e importado em conformidade com todas as regulamentações alfandegárias, não caberia sua devolução. No entanto, a legislação alemã não impediria a devolução do fóssil como preceitua o próprio ditame legal da Unesco, pois o país é signatário da convenção desde 1973[6].

Obra de Denilson Baniwa, com o desenho de uma menina indígena, com trajes típicos, ela está descalça e tem as mãos, pés e tornozelos pintado de vemelho. Ela tem a pele escura, tem o olhar voltado pra frente e tem desenhos vermelhos no rosto. Ao seu lado está um carrinho de supermecado. O fundo é verde, simulando uma floresta, e o chão em tons de marrom.
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Na floresta nao tem mercado (imagem: Denilson Baniwa)

Diante disso, após muitas negociações entre o Ministério das Relações Exteriores brasileiro e o Estado alemão, o fóssil Ubirajara foi devolvido ao Brasil, com cerimônia solene no Ministério de Ciências, Tecnologia e Inovação no dia 12 de junho de 2023, e encaminhado na mesma semana para o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, pertencente à Universidade Regional do Cariri (Urca) e localizado em Santana do Cariri, no Ceará, sob a responsabilidade do professor Allysson Pontes Pinheiro. O retorno do bem cultural nacional está contribuindo de forma significativa para que outras requisições sejam atendidas.

Atualmente, segundo Marie Cornu e Marc-André Renold (2010), há uma variedade de termos para a devolução de bens culturais. Os acordos negociados às vezes oferecem soluções complexas, havendo também uma tendência de “afastar” a propriedade da posse. Apesar de algumas soluções evidenciarem a devolução dos bens culturais ou um acordo baseado nela, outras fornecem uma alternativa à devolução sujeita a certas condições, bem como soluções conjuntas.

Além disso, várias soluções específicas podem ser adotadas cumulativamente em um caso específico, como se deu, por exemplo, no caso brasileiro da Coleção de Índios Waurà, sendo as partes da controvérsia o Museum der Kulturen Basel versus os Herdeiros Penteado Coelho e o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). No caso, Vera Penteado Coelho comprou bens culturais etnológicos brasileiros e os exportou ilegalmente para fora do país. Após a sua morte, em 2000, seu testamento legou os bens culturais ao Museum der Kulturen Basel, na Alemanha. No entanto, na mesma época o museu recebeu uma carta de representantes do povo Uaurá protestando contra o envio de seu patrimônio cultural para o exterior, para longe de si mesmos e das gerações futuras.

Com isso, o MAE/USP também contestou o espólio. Apesar disso, somente em 2008 parte da coleção foi doada ao museu universitário. O contrato de doação incluiu cláusulas de cooperação cultural e garantia de acesso à coleção para indígenas e a comunidade científica, bem como a possibilidade de transferência da coleção para um futuro museu dos Uaurá (BRUST, 2009). O objetivo era promover a troca de conhecimentos sobre essa temática e compreender a importância da coleção para os indígenas Uaurá.

De maneira geral, parece haver um movimento em direção a acordos que não se expressam formalmente em termos de vitória ou derrota, mas que reconhecem a existência de interesses legítimos de ambas as partes.

Conclusão

Com base no que foi visto, uma análise comparativa da prática internacional demonstra que existem novos e variados meios alternativos de devolução de bens culturais. A prática nesse campo parece ser orientada por novos princípios éticos que regem a formação de coleções públicas e privadas, já que o patrimônio cultural não é mais adquirido como no passado, mesmo que as apropriações indevidas sejam ainda similares e constantes.

Pode-se observar e destacar uma prática emergente associada ao entendimento de haver uma obrigação com certos valores do patrimônio cultural, incluindo a identificação, a memória e o uso social de um bem cultural. Essas considerações éticas se aproximam da opinio juris necessitatis[7], condição necessária para a existência de um costume na comunidade internacional. É por meio de práticas éticas de devolução de bens culturais que um Estado de Direito é formado.

 

Como citar este artigo

SOARES, Anauene Dias. “Apropriações indevidas:  riscos e disputas na devolução de bens culturais”. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 36, 2023. Disponível em: https://itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/apropriacao-devolucao-patrimonio-bens-culturais-internacional. Acesso em: [data]

 

Anauene Dias Soares foi coordenadora da Red List brasileira, do Conselho Internacional de Museus (Icom). É consultora ad hoc da Unesco – combate ao tráfico ilícito de bens culturais. Atua como perita de obras de arte, advogada e consultora jurídica – direito das artes e do patrimônio cultural. Doutoranda em relações internacionais [Universidade de Brasília (UnB)], mestra em ciências no programa Mudança Social e Participação Política [Universidade de São Paulo (USP), 2015], especialista em direito internacional (Cedin, 2016), especialista em restauração de bens móveis [Universidade Politécnica de Valência (UPV), Espanha, 2006], bacharel em direito [Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), 2015] e graduada em artes visuais (USP, 2007). É coordenadora cultural do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), membro do Instituto de Avaliação e Autenticação de Obras de Arte (i3A) e perita registrada na Ordem dos Peritos do Brasil (Operb). É associada da International Law Association do Brasil (ILA) e da Association of Cultural Heritage Studies (ACHS). Publicou, em 2018, o livro Direito internacional do patrimônio cultural: o tráfico ilícito de bens culturais.

 

Referências

BENHAMOU, Françoise. Economia do patrimônio cultural. São Paulo: Edições Sesc, 2016.

BRASIL. Constituição de 5 de outubro de 1988. Artigos referentes ao patrimônio cultural brasileiro. Distrito Federal: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.iphan.gov.br. Acesso em: 19 jul. 2023.

CORNU, Marie; RENOLD, Marc-André. New Developments in the Restitution of Cultural Property: Alternative Means of Dispute Resolution. International Journal of Cultural Property, v. 17, p. 1-31, 2010.

FORREST, Craig. A New International Regime for the Protection of Underwater Cultural Heritage. International and Comparative Law Quarterly, v. 51, p. 511-554, 2002.

ICOM. Declaration on the Importance and Value of Universal Museums. Paris: Icom, 2010. Disponível em: https://icom.museum/en/ressource/declaration-on-the-importance-and-value-of-universal-museums/. Acesso em: 10 jul. 2020.

ICOM. Museum Security Network. In: Encyclopedia of Global Archaeology. New York: Springer, 2011. Disponível em: https://www.museum-security.org/msn/. Acesso em: 16 ago. 2023.

ICOM. Brazilian Red List. Paris: Icom, 2023. Disponível em: https://icom.museum/wp-content/uploads/2023/02/Red-List-Brazil_Page_Final_EN.pdf. Acesso em: 12 ago. 2023.

KOWALSKI, W. Types of Claims for Recovery of Lost Cultural Property. In: Museum International: Protection and Restitution, v. 57, n. 4. 2005.

LIXINSKI, Lucas. International Heritage Law for Communities. Oxford: Oxford University Press, 2019. 

ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os povos indígenas. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 12 ago. 2023.

ONU. Haia Convention for the Protection of Cultural Property in the Event of Armed Conflict, 14 maio 1954. Haia, 1954. Disponível em: https://en.unesco.org/sites/default/files/1954_Convention_EN_2020.pdf. Acesso em: 10 ago. 2023.

PERROT, X. De la restitution internationale des biens culturels aux XIXème et XXème siècles: vers une autonomie juridique. 2005. Tese (Doutorado em História do Direito) – Universidade de Limoges, França, 7 dez. 2005.

POMIAN, K. Memory and Universality: New Challenges Facing Museums. Paris: Unesco, 2007.

PROTT, L. V. Commentaire relatif à la Convention Unidroit. Paris: Unesco, 2000.

SHAW, Malcolm N. International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

UNESCO. Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property, November 14, 1970. Disponível em: https://en.unesco.org/about-us/legal-affairs/convention-means-prohibiting-and-preventing-illicit-import-export-and. Acesso em: 8 ago. 2023.

UNESCO. Resolution 3/3.1/2 adopted by the General Conference at its twentieth session. The Intergovernmental Committee for Promoting the Return of Cultural Property to its Countries of Origin or its Restitution in case of Illicit Appropriation of November, 1978. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000114032. Acesso em: 10 ago. 2023.

UNIDROIT. Convention on Stolen or Illegally Exported Cultural Objects of June 24, 1995. Disponível em: https://www.unidroit.org/instruments/cultural-property/1995-convention/. Acesso em: 19 jul. 2023.



[2] Ver: https://artcrimes.fbi.gov/. Acesso em: 12 ago. 2023.

[4] Ver mais informações em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/devolvam-nossa-galinha/. Acesso em: 12 ago. 2023.

[5] Cultural Property Protection Act of 31 July 2016 (Federal Law Gazette [BGBl.] Part I, p. 1914), Section 32 – Unlawful import of cultural property. Disponível em: https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_kgsg/englisch_kgsg.html. Acesso em: 12 ago. 2023.

[6] Segundo a Convenção da Unesco de 1970, basta que um dos Estados seja membro para que o ditame possa ser aplicado em um conflito.

[7] Termo jurídico usado para especificar normas internacionalmente obrigatórias.

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