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O desenho de Denilson Baniwa, com a figura de uma menina indígena com headfones rosas, conectados à um celular que ela está olhando e segurando com a mão esquerda. Essa personagem tem cabelos pretos e lisos abaixo dos ombros, a pele vermelha e está usando apenas uma pulseira amarela e um brinco verde. O fundo estão grafias indígenas em cor azul em um fundo roxo

Marco da Cultura: uma construção necessária

A urgência de um acesso verdadeiramente inclusivo e democrático ao fomento cultural é o tema do artigo de Áurea Carolina, Leonardo Lessa e Carolina Albuquerque

Publicado em 10/11/2023

Atualizado às 03:00 de 11/05/2025

por Áurea Carolina de Freitas e Silva, Leonardo Lessa e Carolina Abreu Albuquerque

“Precisamos que a cultura seja esse corpo que pulsa, que canta,

que encanta e que, do barro do chão, a gente possa brotar um novo país.”

(Carol Vergolino[1])

Resumo

À luz de debates sobre a necessária democratização das políticas de fomento cultural, este artigo apresenta o Marco Regulatório do Fomento à Cultura (PL no 3.905/21), proposto pelos mandatos de Áurea Carolina (PSOL/MG), Benedita da Silva (PT/RJ) e Túlio Gadêlha (Rede/PE) na Câmara dos Deputados. A implementação de instrumentos jurídicos que considerem as especificidades do fazer cultural é entendida como estratégia para a superação de obstáculos de acesso ao fomento, sobretudo por populações historicamente marginalizadas.

 

Capa da Revista Observatório 36

[acesse aqui o sumário da Revista Observatório 36]

Ainda que tenhamos avançado significativamente na legislação de fomento à cultura nas últimas três décadas, a gestão dos mecanismos de fomento permanece marcada por desafios estruturantes. Por falta de um ordenamento jurídico adequado às especificidades do setor, as normas que disciplinam esses mecanismos ainda se revelam completamente deslocadas da realidade de artistas, agentes culturais e fazedores de cultura, impondo entraves burocráticos que reforçam desigualdades históricas.

Como deputada federal e integrantes do mandato de Áurea Carolina na Câmara dos Deputados (PSOL/MG – de 2019 a 2022), apresentamos, em parceria com parlamentares integrantes da Comissão de Cultura, uma poderosa alternativa a esse cenário. O Marco Regulatório do Fomento à Cultura[2], protocolado em novembro de 2021 junto com o mandato de Benedita da Silva (PT/RJ) e o de Túlio Gadelha (Rede/PE), prevê uma nova caixa de ferramentas para a gestão da cultura no Brasil, ao estabelecer um regime jurídico para as políticas de fomento à cultura de um ponto de vista inclusivo e democrático, atento às especificidades regionais e às dinâmicas próprias do fazer cultural.

Construído em ampla articulação com especialistas em direito da cultura, agentes culturais e dirigentes públicos de cultura de diferentes estados brasileiros, o projeto também passou por consulta pública, recebendo contribuições de diversos setores da sociedade civil. Recentemente, foi aprovado pela Câmara dos Deputados[3] e tramita no Senado. Neste artigo, buscamos apresentar a proposta do Marco da Cultura à luz de debates sobre a necessária simplificação, desburocratização e modernização das políticas de fomento como estratégia para a superação dos obstáculos de acesso à cidadania cultural.

Os desafios do fomento à cultura para a gestão pública

Um conjunto de legislações federais criadas e implementadas nas três últimas décadas trouxe relevantes contribuições para o desenvolvimento do setor cultural brasileiro, ampliando fontes de financiamento para projetos culturais e consolidando importantes programas governamentais como políticas de Estado. Essas normativas ganharam respaldo máximo em nosso arcabouço legal com a previsão expressa dos sistemas de financiamento da cultura como componentes da estrutura do Sistema Nacional de Cultura (SNC)[4].

Desenho de Denilson Baniwa, ocupando a maior parte da imagem há a figura de uma mulher indígena, com grafias na altura da testa e nas bochechsa, ela usa uma camisa branca e está lendo o livro
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Sem título (imagem: Denilson Baniwa)

A Lei Federal de Incentivo à Cultura (no 8.313/1991), a Lei do Audiovisual (no 8.685/1993), a Lei Cultura Viva (no 13.018/2014) e, mais recentemente, a Lei Aldir Blanc (no 14.017/2021), a Lei Paulo Gustavo (no 195/2022) e a Lei Aldir Blanc 2 (no 14.399/2022) são exemplos desse conjunto de políticas culturais que, por meio de sua consolidação como textos legais, deveriam garantir a continuidade de iniciativas de governos distintos como políticas estruturantes para o setor. Mas esse arcabouço legal não tem sido suficiente para assegurar os direitos culturais.

É inegável a persistência de uma grande lacuna na democratização do acesso aos recursos. Mesmo com uma considerável ampliação do investimento público no setor cultural nas últimas décadas, nossa legislação de fomento ainda é considerada excludente e elitista por uma expressiva camada dos agentes culturais brasileiros, especialmente quanto a culturas tradicionais e territórios periféricos. A artista e gestora cultural Jaqueline Fernandes (2021) descreve bem esse cenário:

O terreiro não tem documento. A capoeira não tem Ordem dos Músicos. Mestras e mestres griôs não têm o valor da oralidade ancestral considerada na maior parte dos editais. As comunidades quilombolas não estão em dia com o ECAD. Nós sempre criamos, mas os direitos autorais não entram nos nossos bolsos. Para tradições negras, regras brancas. A cultura do sinhôzinho ainda é a que tem fomento. Quem tem os mecanismos, leva (FERNANDES, 2021).

A inadequação das ferramentas e exigências burocráticas para o necessário fomento à cultura desvela um verdadeiro déficit democrático. Os traços colonialistas, racistas, machistas e classistas que organizam e estratificam a sociedade brasileira acabam por ter reflexo direto na elaboração e na implementação das políticas públicas de cultura e, como não poderia deixar de ser, nos instrumentos jurídicos estabelecidos pelas legislações que as regulamentam.

A inadequação das ferramentas e exigências burocráticas para o necessário fomento à cultura desvela um verdadeiro déficit democrático.

Parte significativa dos agentes culturais pode ser excluída já na “porta de entrada” dos mecanismos de fomento cultural pelas próprias normas que os regulam. Não seria exagero inferir que a maioria daqueles e daquelas que nem sequer têm conhecimento da publicação desses editais, ou que até mesmo desistem de disputá-los em razão da complexidade das demandas burocráticas exigidas, é também composta de pessoas negras habitantes de regiões empobrecidas da cidade.

Do outro lado da política, na perspectiva de gestores culturais nos estados e municípios, a natureza jurídica dos instrumentos específicos dos sistemas de financiamento da cultura no Brasil também se revela um entrave central. A advogada Cecília Rabêlo, ex-presidente e sócia fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais e editora deste número 36 da Revista Observatório, explica como a ausência de uma legislação específica praticamente impossibilita o trabalho na ponta:

Estar em uma Assessoria Jurídica de um órgão de cultura é ter, de um lado, o Tribunal de Contas e as controladorias cobrando rigidez e controle do gestor no fomento e, do outro, o setor artístico e cultural requerendo instrumentos viáveis e condizentes com a realidade da sua prática. É uma balança impossível de ser equilibrada sem uma legislação clara e específica para o fomento à cultura (RABÊLO, 2021).

Atualmente, quando o contorno de uma relação de fomento cultural não encontra amparo em outras legislações específicas, a tendência é enxergá-la como similar ao instituto do convênio e aplicar subsidiariamente o que preconiza a Lei de Licitações e Contratos, antiga Lei no 8.666/93[5]. Mas, como as relações da cultura são de outra natureza, essa utilização acaba inviabilizando repasses financeiros ou gerando problemas graves, tais como “inadimplência nas prestações de contas, devolução de recursos, gestores com contas reprovadas e um fomento que causa mais problemas do que soluções” (RABÊLO, 2021). São as consequências de usar a caixa de ferramentas equivocada para lidar com a cultura.

Obra de Denilson Baniwa, com o desenho de um personagem ao centro, com a pele amarela e desenhos no corpo, ele está segurando um megafone e há um balão com falas que remetem à arte indígenas. Ao lado direito há o desenho de um peixe e um pássaro, e no esquerdo de uma onça, todos em amarelo também. O fundo é todo em azul claro.
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Sem título (imagem: Denilson Baniwa)

Para corrigir essas distorções, é necessário superar a defasagem de instrumentos jurídicos para o financiamento público da cultura, como recomenda Clarice Costa Calixto, advogada da União e ex-coordenadora da Consultoria Jurídica do Ministério da Cultura:

A complexidade do sistema de financiamento público da cultura reside na pluralidade de mecanismos que devem estar à disposição do gestor público para a concretização das políticas culturais, com os respectivos instrumentos jurídicos de formalização, sujeitos a regimes jurídicos diferentes de acordo com a finalidade pretendida na situação concreta (CALIXTO; VILLA, 2018, p. 191).

Daí a necessidade (e a urgência) da formulação de uma legislação específica, que delimite os contornos do direito da cultura como direito setorial, em regramentos que considerem as especificidades do fazer cultural em toda a sua diversidade.

A construção do Marco da Cultura

É nesse contexto que o Marco Regulatório do Fomento à Cultura é proposto, buscando trazer clareza e segurança jurídica para o entendimento das relações entre a administração pública da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e agentes culturais no âmbito do financiamento público a projetos e atividades das mais diversas linguagens. O Marco da Cultura cria um caminho jurídico específico: o regime próprio de fomento cultural. A partir de um paradigma de administração pública gerencial moderno e simplificado, o conjunto de regras estabelece procedimentos desburocratizados de execução e indica diretrizes claras para um monitoramento focado primordialmente em estratégias de controle prévio e controle concomitante, comprovadamente mais eficazes para o combate à corrupção e ao desperdício de recursos públicos.

Do ponto de vista dos chamamentos públicos, o projeto cria orientações para tornar editais e processos seletivos verdadeiramente inclusivos e democráticos, com a previsão de ações afirmativas, formatos acessíveis para pessoas com deficiência, autorização de busca ativa para a participação de fazedores de cultura e inscrições realizadas oralmente para grupos vulneráveis. A prestação de contas passa a ser focada no cumprimento da ação cultural, evitando a criminalização do agente cultural. Do ponto de vista da gestão, a possibilidade de usar a Lei de Licitações e Contratos fica vedada, evitando-se, assim, os enormes problemas gerados pela inadequação desse regime (pensado para situações de interesses contrapostos) diante da realidade da cultura, em que os interesses são coincidentes no sentido da realização de um projeto ou uma ação cultural.

Obra de Denilson Baniwa com o desenho de dois rapazes indígenas, à direita o rapaz tem pele avermelhada, cabelo preto, está sem camisa, com short preto, usa colares e pulseiras e está segurando uma câmera de filmagem com a mão direita. O rapaz da esquerda também tem pele avermelhada e cabelo preto, está sem camisa e usa um short azul, ele usa dois colares atravessados no corpo em formato de x e segura um celular como se também estivesse filmando algo.
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Quem com ferro fere, com ferro será ferido (imagem: Denilson Baniwa)

É importante mencionar que várias dessas medidas foram contempladas pelo Decreto do Fomento à Cultura[6], de no 11.453, apresentado em 23 de março de 2023, já nos primeiros meses da refundação do Ministério da Cultura, sob a gestão de Margareth Menezes. O decreto delimita responsabilidades da administração pública e do agente cultural, prevê parâmetros razoáveis para o acompanhamento e a análise das prestações de contas, com foco nos resultados, e estabelece uma série de medidas para a simplificação e a democratização das chamadas públicas, como elencado por Paiva (2023). São disposições fundamentais para a relação dos entes com os recursos federais de fomento à cultura. Não se trata, no entanto, de uma norma nacional, obrigatória a todos os entes federados. Nesse sentido, ainda não cumpre a urgência de consagrar em lei mecanismos reconhecidamente mais adequados à realidade do setor cultural, válidos e obrigatórios para União, Distrito Federal, estados e municípios.

O desafio de superar a defasagem histórica dos instrumentos jurídicos para a gestão pública do fomento à cultura ainda persiste. (...) Viabilizar o fomento público para quem faz cultura em todas as suas formas é garantir o acesso da população à diversidade da nossa produção cultural.

O desafio de superar a defasagem histórica dos instrumentos jurídicos para a gestão pública do fomento à cultura ainda persiste. É fundamental que a formulação legislativa do Marco da Cultura avance, tanto para a adequação do fomento cultural às suas diversas peculiaridades, quanto para que seu desenho técnico-administrativo seja mais inclusivo e verdadeiramente democrático. Com ele, avançará também toda a sociedade brasileira. Viabilizar o fomento público para quem faz cultura em todas as suas formas é garantir o acesso da população à diversidade da nossa produção cultural.

 

Como citar este artigo

CAROLINA, Áurea; LESSA, Leonardo; ALBUQUERQUE, Carolina. Marco da Cultura: uma construção necessária. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 36, 2023. Disponível em: https://itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/artigo-marco-regulatorio-fomento-cultura. Acesso em: [data]

 

Áurea Carolina de Freitas e Silva é cientista social e mestre em ciência política. Foi vereadora de Belo Horizonte e deputada federal por Minas Gerais, com atuação de destaque na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Coordenou o grupo técnico de Cultura no gabinete de transição do governo Lula.

Leonardo Lessa é artista de teatro e gestor cultural graduado em artes cênicas. É diretor-executivo da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Foi correlator do grupo técnico de Cultura do gabinete de transição do governo Lula. Foi assessor parlamentar para Políticas Culturais do mandato de Áurea Carolina na Câmara dos Deputados e chefe de gabinete da vereadora Cida Falabella na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Foi coordenador-geral do Galpão Cine Horto, centro cultural do Grupo Galpão, em Belo Horizonte.

Carolina Abreu Albuquerque é educadora popular, jornalista e mestre em comunicação social. Integrou o Núcleo de Comunicação do mandato de Áurea Carolina na Câmara dos Deputados e assessorou o grupo técnico de Cultura no gabinete de transição do governo Lula.

 

Referências

CALIXTO, Clarice Costa; VILLA, Luciano de C. Combinação entre MROSC e mecenato: parcerias para a captação de recursos em benefício do patrimônio cultural público. In: WORM, Naíma (org.). Parcerias com a sociedade civil na gestão pública brasileira: estudos teóricos acerca do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. 1. ed. Palmas: EDUFT, 2018. p. 191-222.

FERNANDES, Jaqueline. Deu branco nas políticas culturais. Mídia Ninja, 30 out. 2021. Disponível em: https://midianinja.org/afrolatinas/deu-branco-nas-politicas-culturais/. Acesso em: 22 maio 2023.

PAIVA, Carlos. O terreno fértil do novo decreto de fomento à cultura. Nexo, 10 abr. 2023. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/04/10/O-terreno-f%C3%A9rtil-do-novo-decreto-de-fomento-%C3%A0-cultura?position-home=1. Acesso em: 22 maio 2023.

RABÊLO, Cecília. Legislação de fomento à cultura: quando a norma não alcança a realidade. Consultor Jurídico, 20 jun. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-20/rabelo-fomento-cultura-desafios-praticos-quando-norma-nao-alcanca-realidade. Acesso em: 22 maio 2023.



[1] Trecho da participação da deputada estadual Carol Vergolino (PSOL/PE) no seminário Marco Regulatório do Fomento à Cultura: uma construção necessária, realizado na Câmara dos Deputados em 6 de julho de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AU-4yk_cS4c&list=TLGGlf5maG_2thoxODA1MjAyMw. Acesso em: 22 maio 2023.

[2] Projeto de Lei no 3.905/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2305816. Acesso em: 22 maio 2023.

[4] A partir da inserção do artigo 216-A no texto da Constituição da República Federativa do Brasil, por meio da Emenda Constitucional no 71/2012.

[5] Hoje substituída pela Lei no 14.133/2021.

[6] Decreto no 11.453. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11453.htm. Acesso em: 22 maio 2023.

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