A cultura nos 35 anos da Constituição Federal: decorrências e desafios
Cecilia Rabelo faz um balanço das legislações de cultura na Constituição de 1988 e aponta a importância das políticas de Estado para promover direitos culturais
Publicado em 01/11/2023
Atualizado às 11:53 de 29/12/2023
porCecilia Rabelo
Resumo
A Constituição Federal de 1988 é a base normativa de todas as demais leis do país. Em relação aos direitos culturais, ela inovou ao prevê-los expressamente em seu texto, além de tê-los elevado à categoria de direitos fundamentais, demonstrando a importância destes para a ordem jurídica nacional. Nestes 35 anos de existência, as disposições previstas na Constituição Federal sobre cultura direcionaram a política pública cultural e moldaram o atual arcabouço normativo acerca do tema. Neste artigo, será analisado o teor da tríade da cultura na Constituição Federal, em seus artigos 215, 216 e 216-A, e as decorrências legislativas a partir da norma constitucional, bem como os desafios ainda existentes para a efetivação dos direitos culturais.
1. Constituição Federal e direitos culturais: a busca por um conceito
A Constituição Federal (CF) do Brasil faz 35 anos em 5 de outubro de 2023 e é um marco na história do país. Apelidada de Constituição Cidadã, a norma, que é o fundamento de todo o Estado Democrático de Direito e condiciona todas as demais leis do país, inovou ao dar maior relevância aos denominados direitos fundamentais[1], incluindo aí os direitos culturais.
Apesar de ter destinado uma seção específica para a cultura (seção II, no capítulo III – “Da educação, da cultura e do desporto”, no título referente à “Ordem social” – título VIII) e de, pela primeira vez na história constitucional brasileira (CUNHA FILHO, 2018), ter usado a expressão “direitos culturais”, a CF não traz um conceito sobre eles. Essa definição, no entanto, é necessária para dar contorno jurídico ao tema, afinal, não é possível exigir a efetivação de um direito se nem sequer sabemos do que ele é constituído.
Na busca por esse conceito, cabe retornar a algumas normas internacionais e entender o que elas trazem de diretriz sobre o tema. Como espécie de direitos humanos[2], os direitos culturais estão presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, mas esta não oferece uma definição do termo. Na norma internacional consta apenas uma previsão de que todo ser humano tem o direito de participar da vida cultural da comunidade, de fruir as artes, de participar do progresso científico e de ter garantidos os seus direitos, como autor, à sua criação (art. 27).
Apesar de ter destinado uma seção específica para a cultura e de, pela primeira vez na história constitucional brasileira ter usado a expressão “direitos culturais”, a CF não traz um conceito sobre eles.
Também no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), de 1966, não existe uma conceituação. Muito similar às disposições da DUDH, o Pidesc prevê o direito de participar da vida cultural, de desfrutar dos benefícios do progresso científico e de gozar dos direitos sobre a criação, acrescidos de uma previsão mais “impositiva” para que os Estados realizem medidas de conservação, desenvolvimento e difusão da cultura (art. 15).
A partir desses marcos normativos, restou aos estudiosos do tema a tarefa de propor conceitos sobre os direitos culturais. Para Teixeira Coelho (2011, p. 8), o principal direito cultural seria o de participar da vida cultural, a qual pode ser definida como um “complexo de proposições e relações que dão pleno sentido à liberdade humana”. Seria, pois, um direito de liberdade que, ao lado do direito de se beneficiar do progresso científico e dos direitos de autor, formaria uma tríade que permitiu a obtenção de um consenso mínimo para a assinatura da DUDH pelos Estados (COELHO, 2011).
Para José Afonso da Silva (2001), haveria uma dupla dimensão na expressão “direitos culturais”: ela define tanto uma obrigação estatal de agir para que as pessoas tenham acesso à cultura quanto uma faculdade do indivíduo de exigir ações efetivas do Estado para acessar os bens e serviços culturais. Cunha Filho (2021), por sua vez, critica a ideia de que possa existir um direito à cultura, pois isso pressuporia que há povos com e sem cultura, “civilizados” e “não civilizados”, cabendo àqueles levar a cultura a estes, em uma relação de dominação contrária à ideia de dignidade humana. A partir dessa perspectiva, o professor propõe o seguinte conceito para os direitos culturais:
Direitos culturais são aqueles relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, a interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão referentes ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana. Encontrado um direito em que esses elementos convivam simultaneamente, embora um em maior escala que os outros, trata-se de um direito cultural (CUNHA FILHO, 2018, p. 28).
O conceito dá o contorno jurídico necessário aos direitos culturais, afastando-os da ideia generalizante de que todos os direitos previstos na CF poderiam ser um direito cultural (já que tudo que o humano cria, inclusive o direito, é fruto da cultura) e dando a especificidade necessária para que eles – os direitos relacionados às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes – possam ser exigidos, tanto perante o Estado quanto em relação ao particular, quando for o caso.
2. A tríade dos direitos culturais na Constituição Federal
Compreendido o conceito de direitos culturais, é possível encontrá-los por todo o texto constitucional. Previsões acerca da liberdade de expressão artística, da proteção aos direitos de autor e sobre patrimônio cultural, por exemplo, estão diluídas na CF, em especial em seu artigo 5o, destinado aos direitos e às garantias fundamentais.
Não obstante, a CF foi precisa ao destinar um lugar específico (seção II, capítulo II, título VIII) para tratar do tema da cultura. Apesar da presença dos direitos culturais ao longo do texto constitucional, são os artigos 215, 216 e 216-A que delineiam as normas voltadas especificamente para o tema cultural, em especial a atuação do Estado em relação à cultura, já que se encontram inseridos em um título destinado aos denominados direitos sociais. Segundo Dirley da Cunha Jr. (2011, p. 739):
Os direitos sociais, em suma, são aquelas posições jurídicas que credenciam o indivíduo a exigir do Estado uma postura ativa, no sentido de que este coloque à disposição daquele, prestações de natureza jurídica ou material, consideradas necessárias para implementar as condições fáticas que permitam o efetivo exercício das liberdades fundamentais e que possibilitam realizar a igualização de situações sociais desiguais, proporcionando melhores condições de vida aos desprovidos de recursos materiais.
Apesar da presença dos direitos culturais ao longo do texto constitucional, são os artigos 215, 216 e 216-A que delineiam as normas voltadas especificamente para o tema cultural, em especial a atuação do Estado em relação à cultura, já que se encontram inseridos em um título destinado aos denominados direitos sociais.
Não se está aqui defendendo uma análise meramente “topográfica” do texto constitucional. A localização de um artigo na CF diz menos sobre ele do que o seu conteúdo normativo. No entanto, a existência de três artigos aglutinados em uma mesma seção, denominada “Da cultura”, ao lado de outros direitos sociais e cuja substancialidade remete às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes parece querer desenhar uma diretriz constitucional da atuação estatal no âmbito da cultura.
Originalmente, a referida seção II era constituída apenas de dois artigos, o 215 e o 216. Em 2012, a CF foi alterada para a inserção do artigo 216-A (por isso a presença de dois artigos com a mesma numeração, distinguindo-se pela letra). Ao longo destes 35 anos, o texto foi alterado por mais duas vezes, e várias foram as leis criadas a partir do texto constitucional, buscando dar concretude e efetividade para os direitos culturais.
2.1. Artigo 215
O artigo 215 caput[3] tratava (e continua tratando, já que nunca foi alterado), basicamente, sobre dois pontos: o dever estatal de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e de dar às pessoas acesso às fontes da cultura nacional, e o de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. Trata-se, basicamente, de garantir liberdade de exercício, conferir direito de acesso e fomentar a cultura, três deveres estatais relativos aos direitos culturais.
No parágrafo 1o, a CF trata sobre patrimônio cultural, antes de defini-lo em seguida, no artigo 216, e atribui ao Estado o dever de proteger as manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. A determinação expressa desses três grupos manifesta a intenção da norma de ressaltá-los, demonstrando a compreensão do quanto já eram (e ainda são) precarizados e relegados pelo Estado. A intenção é reforçada no parágrafo 2o, que determina que cabe à lei fixar datas comemorativas de alta significância para diferentes grupos étnicos, em uma clara disposição sobre memória coletiva.
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Nheengaitã (Protagonismo e a nossa voz precisa ser escutada) (imagem: Denilson Baniwa)
Essa lei foi criada em 2010 (no 12.345) e, com cinco artigos, determina apenas que o projeto de lei que vise criar datas comemorativas em âmbito nacional deve ser precedido de audiências e consultas públicas, capazes de atestar a alta significância da data para grupos étnicos, mas também para segmentos profissionais, políticos, religiosos e culturais, em uma ampliação que vai além da determinação constitucional.
Em 2005, há uma alteração no texto do artigo 215 por meio da Emenda Constitucional (EC) no 48, com a inserção de mais um parágrafo, o 3o, que obriga o Congresso Nacional a criar uma lei estabelecendo o Plano Nacional de Cultura (PNC), uma norma que visa ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público para a cultura. A previsão constitucional de elaboração do PNC, com duração de dez anos, parece ser um indício da intenção de sistematizar a política pública de cultura, organizando a atuação entre os entes federados.
Tal previsão se coaduna com a divisão de competências feita pela própria Constituição Federal, que distribuiu entre União, estados, Distrito Federal e municípios tanto o dever de atuar na cultura (artigo 23, incisos III, IV e V) quanto o de criar leis sobre esse tema (artigo 24, incisos VIII e IX). Segundo a justificativa apresentada para a criação da EC no 48[4], a criação do PNC, com metas consistentes e eficazes, seria um instrumento de política pública de cultura que permitiria a democratização do acesso aos bens culturais.
O PNC foi criado em 2010, por meio da Lei no 12.343, mas não definiu, em seu texto, as metas a serem atingidas no âmbito da política cultural. Ao contrário, estabeleceu diretrizes, estratégias e ações para a criação dessas metas, cuja elaboração foi delegada à coordenação-executiva do PNC [o próprio Ministério da Cultura (MinC)], a partir de subsídios do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), para serem publicadas em até 180 dias após a criação da norma.
Na prática, a criação das metas não cumpriu nem os requisitos legais nem a intenção legislativa quando da criação da EC no 48/2005. Isso porque, além de terem sido publicadas um ano e meio depois e sem a existência do SNIIC, elas não se mostram “consistentes e eficazes”, parecendo muito mais uma carta de intenções do que um plano mensurável. Cunha Filho (2022), em análise da natureza de cada uma das metas, concluiu que menos de 10% delas são do tipo assertivas, passíveis de serem mensuradas e, por conseguinte, alcançadas, enquanto mais de 90% têm baixa possibilidade de cumprimento, seja pela inviabilidade de mensuração, seja pela dependência de fatores externos à política cultural.
Na prática, a criação das metas não cumpriu nem os requisitos legais nem a intenção legislativa quando da criação da EC no 48/2005. Isso porque, além de terem sido publicadas um ano e meio depois e sem a existência do SNIIC, elas não se mostram “consistentes e eficazes”, parecendo muito mais uma carta de intenções do que um plano mensurável
Para Albino Rubim (2009, p. 61), o PNC, pela força social e política a ele inerente, tende a se transformar, ao longo do texto, em um “amontoado disforme e dispersivo de conteúdos, por vezes repetitivo, das mais distintas reivindicações e visões, sem possibilitar uma estruturação mais orgânica que permita definição de prioridades, imprescindível a um plano consistente”.
Além da pouca aplicabilidade das metas do PNC, é interessante notar que a sua obrigatoriedade constitucional se deu em 2005, sete anos antes da Emenda Constitucional no 71/2012, que criaria o Sistema Nacional de Cultura (SNC). O PNC é um dos elementos estruturantes do SNC, já que é a “carta de navegação” dos entes federados para a consecução da política pública de cultura. Qual é o sentido, portanto, de criar o PNC antes de criar o próprio sistema que o resguarda?
Segundo Guilherme Varella (2014), a criação desarmoniosa entre PNC e SNC se deu por diversas circunstâncias políticas, tais como a tramitação em épocas diferentes no Congresso Nacional e o fato de cada projeto ter sido conduzido por secretarias diferentes dentro do próprio MinC (SNC pela Secretaria de Articulação Institucional e PNC pela Secretaria de Políticas Culturais), além das mudanças oscilantes na energia dispendida pelo governo federal em cada projeto, que mudava a depender da conjuntura política.
A elaboração dissociada entre PNC e SNC parece ser um dos problemas para a efetividade de ambos. Ainda segundo Guilherme Varella (2014, p. 168):
O Sistema depende do Plano para fornecer os objetivos culturais e institucionais a serem alcançados através das políticas públicas, o programa cultural que deverá guiar as gestões públicas nos três níveis (federal, estadual e municipal). O Plano depende do Sistema para articular estes níveis, criar os mecanismos burocráticos de repasse e controle de verbas e estabelecer as instâncias de participação social que acompanharão, fiscalizarão e avaliarão a aplicação das políticas. Pela essencialidade de sua imbricação, estes dois mecanismos deveriam ter caminhado juntos desde o início de sua elaboração e tramitação legal.
2.2. Artigo 216
O segundo artigo da seção “Da cultura”, o 216, fala sobre patrimônio cultural, trazendo uma compreensão abrangente do que pode ser caracterizado como tal para fins de proteção jurídica. Independentemente da natureza do bem, se material ou imaterial, individual ou em conjunto, ele poderá ser declarado patrimônio cultural se houver referência à identidade, à ação ou à memória de um ou mais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira.
Contrapondo-se à ideia de monumentalidade presente no Decreto-Lei no 25, de 1937, norma de tombamento federal que regia, quase que exclusivamente, a temática do patrimônio cultural até então, a CF se fundamenta no valor de referência para balizar a conceituação de patrimônio cultural. Inês Virgínia Prado Soares (2009) destaca que o uso do valor de referência permite compreender que o poder para conceituar o que seja patrimônio cultural não está no Estado ou em grupos predominantes, mas espalhado por todos os grupos formadores da sociedade brasileira, a depender da referência que esses grupos tenham em relação a determinado bem, em uma nítida concretização da diversidade cultural.
Os parágrafos do artigo 216 trazem, em suma, deveres pertinentes ao Estado em relação ao fomento e ao patrimônio cultural, como a proteção por meio de instrumentos acautelatórios como o tombamento e o registro; o dever de gerir a documentação governamental e sua disponibilização ao público; a previsão de qual lei estabelecerá incentivos à produção e ao conhecimento de bens e valores culturais; a punição dos danos e das ameaças ao patrimônio cultural; e o tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas quilombolas.
Sobre os instrumentos acautelatórios, não houve grande avanço legislativo desde 1988. Entre os cinco citados[5], apenas o tombamento e a desapropriação, que já existiam à época da promulgação da CF, são regulamentados por lei[6]. A proteção do patrimônio cultural imaterial, que abrange os modos de fazer, viver e criar, é regulamentada por um decreto do Poder Executivo (no 3.551/2000), tipo normativo frágil, já que pode ser revogado por uma simples decisão de governo sem passar pelo crivo do processo legislativo.
Já quanto ao “tombamento” dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas quilombolas, não obstante a expressividade da CF ao determinar uma espécie de “proteção automática” a esses bens (é o único momento em que a CF usa a expressão “ficam tombados”), constata-se, 35 anos depois, a existência de apenas um caso registrado após 1988[7] no âmbito federal: o reconhecimento do Quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais. A limitada atuação estatal na proteção dos bens culturais relativos aos quilombos parece destoar da importância dada a estes pelo texto constitucional.
O dever de gerir a documentação pública e o seu acesso pela população, por sua vez, foi regulamentado pela Lei de Acesso à Informação (no 12.527/2011), um importante passo para a democratização das informações de interesse público, em especial aquelas relacionadas a períodos ditatoriais, e em nítido alinhamento com o direito à memória coletiva. Já a punição por danos e ameaças ao patrimônio cultural, apesar de concretizada pela Lei de Crimes Ambientais (no 9.605/1998), ainda está longe de proteger esses bens culturais de forma efetiva.
Segundo o promotor de Justiça Marcelo Azevedo Maffra, os tipos penais existentes no Brasil, seja no Código Penal (CP) ou na Lei de Crimes Ambientais, não abrangem as diversas condutas danosas ao patrimônio cultural. Em audiência pública realizada na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados[8] em maio de 2023, o promotor ressaltou que a ausência de tipo penal específico para o furto de obras de arte, por exemplo, faz com que o furto de uma escultura de Aleijadinho tenha possibilidade de pena muito menor (de um a quatro anos, pois é furto simples previsto no artigo 155 do CP) do que o furto de um botijão de gás (de quatro a dez anos, pois é furto qualificado previsto no artigo 155, parágrafo 7o do CP).
Em relação ao dever de criar leis de incentivo à produção e ao conhecimento de bens culturais, é possível citar a própria Lei Rouanet[9] (no 8.313/9191), a norma mais importante de fomento à cultura do país. Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas [FGV (2018)], a cada 1 real investido por meio da Rouanet, é movimentado 1,59 real na economia local, atingindo 68 setores econômicos diferentes e impactando em mais de 49 bilhões de reais a economia nacional. É certo que a lei apresenta problemas práticos em sua execução, como a concentração de recursos em determinadas regiões do país, mas isso não lhe retira o mérito de ter sido – e de continuar a ser – a principal fonte de recursos públicos do setor.
Mais recentemente, em decorrência dos efeitos danosos da pandemia de covid-19, foram promulgadas outras leis de fomento ao setor cultural. A Lei Aldir Blanc (no 14.017/2020), a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar no 195/2022) e a Lei da Política Nacional Aldir Blanc (no 14.399/2022) destinaram (e destinarão) bilhões de reais para o fomento à cultura, num importante aumento de recursos no setor.
O artigo 216 apenas foi alterado em 2003, por meio da EC no 42, que trouxe a possibilidade de os estados e o Distrito Federal vincularem até 0,5% de sua receita tributária líquida aos seus fundos de fomento à cultura, a fim de financiar programas e projetos culturais. É interessante notar que o texto original da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – que era sobre a reforma tributária da época – nem sequer previa tal disposição, tendo esta sido inserida por meio de proposta do relator, com fundamento em “fortes reivindicações de Estados e da classe artística”[10].
Ensaio Artístico Revista Observatório 36 | Denilson Baniwa - Sem título (imagem: Denilson Baniwa)
Ocorre que tal inserção, feita numa PEC que recebeu mais de 400 emendas[11], não traz muitos efeitos práticos. A vinculação de receitas tributárias é vedada pela Constituição Federal, sendo permitida apenas se prevista no próprio texto constitucional, como é o caso da saúde (artigo 198, parágrafo 2o) e da educação (artigo 212). A diferença, neste caso, está na coercitividade da previsão constitucional. Nos artigos relacionados à saúde e à educação, há uma imposição de vinculação, ou seja, o recurso deve ir para ações nesses setores. Já na disposição do artigo 216, parágrafo 6o, há apenas uma faculdade, ou seja, é uma decisão facultativa dos estados e do Distrito Federal vincular ou não sua receita ao fundo de cultura.
Ao que parece, não houve força política suficiente para inserir uma obrigatoriedade de vinculação de receita ao setor cultural. Até hoje, nenhum dos estados realizou essa vinculação por meio de sua respectiva Constituição Estadual, e não há como obrigá-los juridicamente a tanto, já que a CF apenas facultou a possibilidade. Ainda há projetos de lei[12] tramitando no Congresso Nacional que tentam tornar obrigatória a vinculação.
Ao que parece, não houve força política suficiente para inserir uma obrigatoriedade de vinculação de receita ao setor cultural. Até hoje, nenhum dos estados realizou essa vinculação por meio de sua respectiva Constituição Estadual, e não há como obrigá-los juridicamente a tanto, já que a CF apenas facultou a possibilidade
2.3. Artigo 216-A
Por fim, o terceiro artigo constitucional da tríade cultural é o 216-A, que traz pela primeira vez a previsão constitucional do SNC. A discussão em torno do SNC não se iniciou em 2012. Segundo Clarissa Semensato e Alexandre Barbalho (2020), a ideia de estabelecer um sistema nacional de política cultural já fazia parte do programa de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) desde 2002. Dali em diante, o Ministério da Cultura promoveu ações voltadas para a criação e a consolidação desse sistema, por meio da realização de conferências, fóruns e seminários e de propostas legislativas, como a PEC 416/2005, transformada posteriormente na EC 71/2012, que inseriu o 216-A no texto constitucional.
O SNC se propõe a ser um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura – democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade – e organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, com o objetivo de promover o desenvolvimento humano, social e econômico por meio do pleno exercício dos direitos culturais.
Com princípios estabelecidos e estruturado em nove elementos, tais como conselhos, conferências, planos e sistema de financiamento, o SNC existe desde 2012 na CF, mas nunca chegou a ser regulamentado via lei, em flagrante omissão legislativa da obrigação prevista no parágrafo 3o do artigo 216-A, que diz que a lei federal disporá sobre a regulamentação desse sistema. Importante notar que, apesar de a CF falar em norma federal, ela teria, na verdade, um caráter nacional[13], pois seria uma norma geral obrigatória para todos os entes federados.
É certo que toda disposição constitucional goza de eficácia jurídica, ou seja, tem força obrigatória e pode ser exigida. Ainda que não tenham sido regulamentados por via legal, os artigos constitucionais podem ser aplicados diretamente pela via judicial, por exemplo, desde que caracterizada a situação prevista na norma (CUNHA JR., 2011). Não obstante, a falta da lei regulamentadora traz prejuízos graves à aplicação prática do SNC.
Isso se dá porque os elementos estruturantes do sistema, previstos expressamente no parágrafo 2o da CF, não têm sua configuração determinada. Não há regras, por exemplo, acerca de como será implementado o sistema de financiamento à cultura (inciso VI), como se compõem e quais são as atribuições dos conselhos de cultura (II), quais devem ser os parâmetros para a criação dos planos de cultura (V) ou como se dá a relação interfederativa na execução dessas ações.
Essa omissão legislativa faz com que o SNC não exista de forma efetiva, permitindo que cada sistema estadual e municipal de cultura seja criado a partir de regras próprias, configurando seus “elementos estruturantes” da forma como entender mais adequada. Isso se torna ainda mais grave quando se fala de fomento à cultura. União, estados, Distrito Federal e municípios aplicam regras diversas ao repassar recursos públicos para agentes culturais, por meio de procedimentos muitas vezes completamente díspares entre si.
Essa omissão legislativa faz com que o SNC não exista de forma efetiva, permitindo que cada sistema estadual e municipal de cultura seja criado a partir de regras próprias, configurando seus “elementos estruturantes” da forma como entender mais adequada.
As regras de repasse de recurso e prestação de contas de um edital da Agência Nacional do Cinema (Ancine), por exemplo, são absolutamente diferentes das regras de repasse de recursos e prestação de contas aplicadas pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), ambas entidades federais. Os editais lançados por estados e municípios também são absolutamente diversos entre si, com regras de repasse, seleção e prestação de contas totalmente diferentes e, por vezes, contraditórias.
Não se está aqui falando que toda a política pública de cultura do país deve ser uniforme. A diversidade da cultura brasileira e o tamanho continental do país exigem que a política pública de cultura seja, evidentemente, plural. No entanto, não há motivos para que as regras básicas de configuração de um conselho de cultura, por exemplo, mudem a depender do município no qual ele é criado. Não faz sentido que o poder público se utilize de regras diferentes para realizar o fomento à cultura, visto que a natureza jurídica da ação estatal – fomentar a cultura – não muda se ela é realizada pela União, pelo estado ou pelo município.
A falta de uma regulamentação geral causa insegurança jurídica tanto para o gestor público de cultura quanto para os agentes culturais, sentida de forma intensa, por exemplo, na execução da Lei Aldir Blanc (LAB). Foi a primeira vez na história do país que um recurso tão alto foi repassado pela União aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para fomentar o setor cultural, e o retrato da execução da LAB foi de total insegurança jurídica na aplicação desse recurso, com diversos municípios optando, inclusive, por não recebê-lo.
De acordo com um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [Ipea (2021)], apesar de todos os estados terem recebido recursos da LAB, apenas 75% dos municípios optaram pelo recebimento, e o percentual cai para 66% quando se trata de municípios pequenos, com até 20 mil habitantes. Segundo o estudo, “as transferências não foram acompanhadas de fortalecimento institucional e se submetem a complicadas prestações de contas, ademais de terem sido feitas com legislação de excepcionalidade” (IPEA, 2021).
Ensaio Artístico Revista Observatório 32 | Denilson Baniwa - Arqueiro digital (imagem: Denilson Baniwa)
A presença de uma norma geral de estruturação do SNC, com regras claras sobre como deveria funcionar o sistema de financiamento (art. 216, § 2o, inciso VI da CF), por exemplo, poderia ter sido um passo do fortalecimento institucional necessário à execução efetiva da LAB. Percebidos os problemas da ausência de uma lei sobre fomento à cultura no país na execução da LAB, o teor da Lei Paulo Gustavo (LPG), publicada dois anos depois, já se apresenta muito mais prático na tentativa de prever as regras mínimas para a execução do recurso.
Na sequência dessas tentativas de normatização do fomento à cultura, foi publicado o Decreto no 11.453/2023, denominado pelo próprio governo federal de “Decreto do fomento cultural”. Na prática, o decreto dispõe sobre os “mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura”, citando expressamente o inciso VI do parágrafo 2o do artigo 216-A da Constituição. É uma norma, portanto, restrita à regulamentação de um (o sistema de financiamento) dos nove elementos estruturantes do SNC.
3. Os direitos culturais levados a sério
A diretriz para a atuação estatal na cultura está prevista na tríade composta dos artigos 215, 216 e 216-A da Constituição Federal. Nela é possível encontrar a base normativa para toda e qualquer ação de política pública de cultura no país. Desde o estabelecimento de deveres de fomento à produção, à difusão e à circulação de conhecimento e bens culturais até a proteção do patrimônio cultural, a CF determina o caminho a ser observado para a efetivação dos direitos culturais.
Não obstante a importância dada à cultura e aos direitos culturais pela CF, consagrados como direitos fundamentais, a política pública voltada para a sua efetivação parece confusa e pouco efetiva. A ausência de uma lei regulamentadora do Sistema Nacional de Cultura revela uma omissão em estruturar a política pública de cultura de forma perene, tal qual ocorre com o Sistema Único de Saúde (SUS), por diversas vezes citado como o grande exemplo inspirador para o SNC (MINC, 2011, p. 40).
O SUS teve sua lei orgânica (no 8.080/90) e a que regulamenta a participação da comunidade na gestão (no8.142/90) promulgadas dois anos após sua previsão constitucional. O SNC conta com 11 anos de espera para ter sua norma regulamentadora criada, conferindo o mínimo de configuração aos seus elementos estruturantes, previstos no parágrafo 2o do artigo 216-A da CF, com base em seus princípios básicos, dispostos no parágrafo 1o do mesmo artigo.
O único elemento estruturante do SNC existente em forma de lei é o Plano Nacional de Cultura, que, como visto, não atinge o objetivo de ser um plano de ação efetivo para a política pública de cultura do país. A sua reformulação – que, inclusive, deveria ter ocorrido em 2022, mas foi prorrogada pelo governo à época – precisa enfrentar o desafio de ser um plano objetivo, com metas mensuráveis, passíveis de serem alcançadas, e não simplesmente uma carta de intenções.
É fato que o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 foi imenso em relação aos direitos culturais. Contudo, as fragilidades normativas nas bases estruturais da política pública de cultura do país, dificultam a efetivação dos direitos culturais e tornam a política pública de cultura ainda mais sujeita às intempéries das políticas de governo.
É fato que o avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 foi imenso em relação aos direitos culturais. O arcabouço normativo do direito da cultura a partir da CF é robusto e trouxe uma nova perspectiva de como o Estado deve se portar diante das demandas inerentes aos direitos culturais. Contudo, as fragilidades normativas nas bases estruturais da política pública de cultura do país, tais como a falta de garantia de orçamento mínimo, a ausência de um Sistema Nacional de Cultura estruturado e um Plano Nacional de Cultura pouco objetivo, dificultam a efetivação dos direitos culturais e tornam a política pública de cultura ainda mais sujeita às intempéries das políticas de governo.
É preciso levar os direitos culturais a sério. E isso depende da construção de bases normativas para sua efetivação nos moldes determinados pela Constituição Federal. Sem isso, continuaremos a executar a política pública de cultura de forma fragmentada, intermitente, como política de governo, e não de Estado, sem a institucionalidade inerente à fundamentalidade dos direitos culturais.
Cecilia Rabelo é advogada no BRA Advocacia Artística e Cultural. Associada fundadora e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Especialista em gestão e políticas culturais pela Universidade de Girona (Espanha) e Itaú Cultural. Especialista em direito público pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Certificada em copyright pela Universidade Harvard (Estados Unidos).
Referências
COELHO, Teixeira. Direito cultural no século XXI: expectativa e complexidade. Revista Observatório Itaú Cultural, n. 11, p. 5-14, 2011.
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Plano Nacional de Cultura: análise jurídica da concepção, tramitação e potencialidades. Educação e Pesquisa, [S. l.], v. 48, n. contínuo, p. e244555, 2022. DOI: 10.1590/S1678-4634202248244555por. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/205251. Acesso em: 31 mar. 2023.
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018.
CUNHA JR., Dirley da. Curso de direito constitucional. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011.
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SEMENSATO, Clarissa Alexandra G.; BARBALHO, Alexandre Almeida. Sistema Nacional de Cultura: um estado da arte da produção acadêmica com foco nos estudos de caso de municípios. PragMATIZES – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói, v. 10, n. 19, p. 350-379, set. 2020.
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VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.
[1] Direitos fundamentais são, em suma, direitos humanos previstos na Constituição Federal. A presença dos direitos humanos na Constituição de um país, tornando-os, portanto, fundamentais, dá a eles a coercitividade necessária para serem exigidos perante o Estado, que, por sua vez, deve dar a eles uma reforçada proteção jurídica.
[2] Direitos humanos são aqueles inerentes à condição humana, que todo indivíduo tem pelo simples fato de ser uma pessoa, independentemente de raça, gênero, credo, etnia etc. Embora eles não tenham surgido apenas por causa da Segunda Guerra Mundial, visto que já existiam anteriormente, é certo que esse fato histórico e suas atrocidades culminaram na necessidade de tornar tais direitos expressos em um documento jurídico, pactuado entre os países.
[3] É a “cabeça” do artigo, o texto que vem logo após sua numeração. É possível que o artigo seja composto apenas do caput ou de outras partes acessórias que especificam o caput, que são os parágrafos, os incisos e as alíneas.
[4] A justificativa encontra-se publicada no Diário da Câmara dos Deputados, com data de 7 de dezembro de 2000, na página 64.790. Disponível em: DCD07DEZ2000VOLI.pdf (camara.gov.br). Acesso em: 23 ago. 2023.
[5] Inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação.
[6] O Decreto-Lei no 25/37 regula o tombamento e o Decreto no 3.365/41 regula a desapropriação por interesse social, que é o caso da desapropriação para fins de proteção do patrimônio cultural (art. 5o, k e l).
[7] O outro caso de “tombamento” de reminiscências quilombolas, que se deu antes da promulgação da CF, em outubro de 1988, é o reconhecimento da Serra da Barriga, região do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, por meio do Decreto Federal no 95.855, de 21 de março daquele ano.
[9] O nome oficial da Lei Rouanet é Lei de Criação do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). O apelido é uma homenagem a Sergio Paulo Rouanet, ex-ministro da Cultura e criador da norma. O Pronac é estruturado em três frentes de fomento: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficarts) e o incentivo fiscal. Tendo em vista os poucos recursos do FNC e a não criação dos Ficarts (existe apenas um), o incentivo fiscal acabou prevalecendo sobre os demais, tornando-se quase que “sinônimo” da Rouanet.
[11] Emendas são alterações ao projeto de lei inicial. São propostas por deputados ou senadores e votadas no âmbito do processo legislativo, podendo ser acatadas ou não.
[12] PEC 421/14, PEC 324/01, PEC 150/03 e PEC 310/04.
[13] Normas federais são aquelas criadas no âmbito do Congresso Nacional. Quando trata apenas de questões atinentes à administração pública federal, como a lei que trata dos servidores públicos federais (Lei no 8.112/1990), por exemplo, a norma é obrigatória apenas para o ente federado União. Já quando uma norma federal trata de questões atinentes às matérias previstas no artigo 24 da CF (matérias de competência legislativa concorrente), ela tem caráter nacional, cabendo o seu cumprimento a todos os entes federados (União, estados, DF e municípios). No âmbito da competência legislativa concorrente, cabe à União criar as normas gerais, aos estados e DF as suplementares, e aos municípios as normas locais.