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Obra de Denilson Baniwa, no centro há a figura de um indígena deitado de costas no chão, com um arco nos pés e puxando uma flecha com as mãos, apontada para cima. A partir do ângulo formado entre o arco e a flecha, o artista incluiu faixas vermelhas simulando a representação de sinal de internet wi-fi.

Direitos territoriais quilombolas: coletividade e saberes que devemos proteger

A importância da titulação e da proteção dos territórios quilombolas, espaços indissociáveis de sua culturalidade, é abordada por Vercilene Francisco Dias

Publicado em 09/11/2023

Atualizado às 11:53 de 29/12/2023

por Vercilene Francisco Dias

Resumo

Embora as discussões sobre a cultura quilombola não sejam atualmente raras, elas dificilmente são escritas pelos próprios quilombolas. O Brasil é um país de múltiplas e diversas tradições culturais, nas quais as comunidades quilombolas com certeza têm parte. Nascidos da luta e da resistência do povo negro trazido da África para ser escravizado no Brasil, nossos antepassados quilombolas batalharam não só pela liberdade de sua forma de trabalho e do seu corpo, mas também pela liberdade da mente e da alma, pela liberdade de praticar seus cultos e saberes. O quilombo foi e continua sendo um lugar de resistência e culturalidade territorializada, e não há como falar de cultura no Brasil sem abordar a diversidade cultural, os saberes e as tradições dos quilombos. As comunidades quilombolas possuem íntima relação com o território que ocupam e de que fazem uso para sua subsistência e seu modo de vida coletivo. Como sujeitos de direitos culturais, suas formas e manifestações culturais devem ser protegidas e incentivadas.

Capa da edição 36 da revista observatório em tons de marrom e amarelo a partir de obra de Denilson Baniwa. A arte é uma montagem a partir de duas representações antigas da amazônia. A primeira ocupando o espaço de baixo da imagem é a vista de uma cidade na Amazônia, com intervenções do artista problematizando a presença da igreja e de portugueses. Na parte de cima, um texto também sobre a amazônia, no qual o artista cobriu partes do texto, deixando sua opinião sobre a ocupação europeia na região

[acesse aqui o sumário da Revista Observatório 36]

O direito à cultura, consagrado no Protocolo de San Salvador (PSS)[1] e reafirmado em vários instrumentos normativos internacionais, como na Convenção Americana[2], na Declaração Americana[3] e na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA)[4], estipula o dever do Estado de priorizar o estímulo à cultura para alcançar o desenvolvimento integral da pessoa humana como fundamento da justiça social e da democracia, bem como de reconhecer o compromisso individual e solidário para preservar o patrimônio cultural dos povos, garantindo o direito de participação a setores populacionais  excluídos e discriminados na vida cultural. Nessa mesma linha, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância[5] destaca mecanismos de prevenção à negação, à inviabilização de acesso, à restrição ou à limitação de direitos individuais ou coletivos referentes à cultura.

Já os instrumentos universais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[6], a Declaração Universal dos Direitos Humanos[7], a Convenção sobre os Direitos da Criança[8], a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres[9] e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial[10], estabelecem que é direito de todas as pessoas participar plenamente da vida cultural e do progresso científico em condições de igualdade. Dessa forma, a cultura deve ser tratada como um direito individual e coletivo das comunidades quilombolas, que salvaguarda seus modos de vida de organização e expressões culturais, e protege seus patrimônios materiais e imateriais, assim como seus conhecimentos tradicionais.

No entanto, no Brasil as liberdades culturais sofrem limitações pelo racismo estrutural e institucional, deixando comunidades vulnerabilizadas à margem, inviabilizando e limitando seus direitos, que na maioria das vezes são exercidos com resistência, mesmo estando juridicamente assegurados.

As comunidades quilombolas, ou simplesmente quilombo, são formadas por grupos sociais remanescentes de pessoas que foram escravizadas, cuja identidade étnica, ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais os distinguem do restante da sociedade (Decreto no 4.887/2003[11]). São comunidades que desenvolveram processos de resistência para manter e reproduzir seu modo de vida característico em um determinado território, onde puderam praticar suas crenças e manifestações religiosas e culturais sem correr o risco de serem repreendidas por tais práticas tradicionais, proteção que só foi possível encontrar no quilombo.

As comunidades quilombolas, ou simplesmente quilombo, são formadas por grupos sociais remanescentes de pessoas que foram escravizadas, cuja identidade étnica, ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais os distinguem do restante da sociedade (...), o quilombo foi e continua sendo um espaço de resistência e liberdade, liberdade de seguir suas práticas tradicionais, culturais e religiosas ancestrais, que insistem em resistir ao furor do tempo e às investidas do capital

As comunidades quilombolas surgiram da luta do povo negro trazido à força da África para alimentar a mão de obra escrava na expansão e exploração da colônia brasileira, o qual, ao se insurgir e se aquilombar, busca a liberdade que ainda não se efetivou. Na luta pela libertação, o quilombo foi e continua sendo um espaço de resistência e liberdade, liberdade de seguir suas práticas tradicionais, culturais e religiosas ancestrais, que insistem em resistir ao furor do tempo e às investidas do capital.

Após o fim formal da escravidão, perpassado um século de silêncio e invisibilidade, em que se buscou efetivar o apagamento da luta e da resistência do povo negro aquilombado, os quilombolas foram enfim reconhecidos como sujeitos de direitos na Constituição de 1988[12], que não somente reconheceu, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)[13], o direito dos quilombolas às suas terras tituladas, como também, nos artigos 215 e 216, conferiu-lhes, como grupos formadores da identidade nacional, o exercício do direito de  acesso, apoio, valorização, difusão e proteção das manifestações culturais populares.

Cabe ressaltar que é na garantia do território quilombola que seus direitos são concretizados, pois o território é espaço necessário para a reprodução cultural, social e econômica, seja ele utilizado de forma permanente ou temporária pelos povos quilombolas. O território é repleto de significado, espaço onde simbolicamente estão impressas nossas memórias de luta e resistência, a base material e imaterial que compõe nossa identidade coletiva. É no território que o cuidado se concretiza, não só de uns para com os outros, mas também no cuidado para com a sustentabilidade da biodiversidade existente: fazendo uso dos recursos naturais de forma equilibrada e sustentável, preocupamo-nos com o agora, mas também com o futuro das gerações que vão usufruir do que cuidamos hoje.

Mapa geográfico do Brasil em amarelo, com as divisões das Unidades Federativas, indicando a estimativa de localidades quilombolas a partir do censo demográfico do IBGE de 2020.

Contudo, é fato que tamanha diversidade resistiu e resiste em territórios conflitivos, pois o direito ao território titulado ainda não se concretizou para mais de 90% das comunidades quilombolas reconhecidas pelo Estado brasileiro. E isso se dá apesar da garantia constitucional do direito às terras tituladas, sendo a titulação de nossas terras condição necessária para a garantia plena do exercício de nossos direitos territoriais e culturais, assim como o acesso a políticas públicas estruturantes para que o quilombo viabilize a preservação do nosso modo de vida. Das 5.972 localidades quilombolas, conforme dados do censo preliminar de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[14] divulgados em abril de 2020, somente 3.591 são reconhecidas atualmente pela Fundação Cultural Palmares[15]. No entanto, apenas 322 títulos foram emitidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)[16], referentes a 206 territórios quilombolas e em benefício de 356 comunidades, isso entre os anos de 1995 e 2023. Trata-se, porém, de titulação parcial, ou seja, o órgão emite o título de uma gleba ou de áreas específicas dentro do território, o que não abrange a titulação de todo o território da comunidade. Cabe observar também que uma grande porcentagem das titulações foi feita por órgãos estaduais e que atualmente o Incra conta com um passivo de 1.802 processos abertos para titulação de quilombos[17]. De acordo com um estudo recente da Organização Terra de Direitos, no atual ritmo, o Brasil levará 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos no Incra[18].

Tabela com o número de certidões e comunidades quilombolas reconhecidas desde 2004.
Quadro geral de comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) (imagem: Itaú Cultural/ Fundação Cultural Palmares)

A demora na titulação dos territórios quilombolas é a reprodução do racismo sistêmico que molda a sociedade brasileira e penaliza um povo que por séculos resiste, em territórios inseguros e conflitivos, onde a violência por parte de quem detém o capital não tem limite e ceifa vidas. 

A desproteção dessas comunidades coloca em risco sua reprodução física, social e cultural, o que constitui uma violação de direitos fundamentais, além de uma grande perda não só para nós quilombolas, mas também para a sociedade brasileira e mundial, tendo em vista que a cultura é elemento fundante para o desenvolvimento socioeconômico dos povos, como bem assevera a Carta Social das Américas[19], e não se limita a simples expressões isoladas, mas faz parte de um processo social criativo no qual as comunidades mantêm suas especificidades e seus propósitos, contribuindo amplamente para o desenvolvimento do mundo como um todo, pois a cultura é patrimônio comum da humanidade, conforme pontua a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais[20], da Unesco.

Gráfico de pizza com as comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) por região do país
Fonte: Fundação Cultural Palmares. INFORMAÇÕES ATUALIZADAS ATÉ 31/12/2022 https://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/quadro-geral-por-estados-e-regioes-15-06-2021.pdf

Se não há garantia do território protegido, a garantia à cultura quilombola inexiste, pois as tradições e culturalidades quilombolas coexistem por meio de seu território. É no território que a vida quilombola perpassa os imaginários mais incríveis. Só quem é quilombola sente e por vezes nem consegue explicar qual é o sentimento de pertença que o faz ir tão longe na luta e na busca por medidas protetivas para aquele espaço de saber e partilha.

A titulação de nossas terras condição necessária para a garantia plena do exercício de nossos direitos territoriais e culturais, assim como o acesso a políticas públicas estruturantes para que o quilombo viabilize a preservação do nosso modo de vida. (...) Se não há garantia do território protegido, a garantia à cultura quilombola inexiste, pois as tradições e culturalidades quilombolas coexistem por meio de seu território.

No quilombo, as expressões culturais podem ser vistas, vividas e sentidas, as histórias de sua origem podem ser ouvidas, principalmente em época de festejos tradicionais, em que a alegria pela chegada tanto dos que precisaram de alguma forma se afastar do território quanto dos visitantes se expressa em uma só comunhão de rezas, danças, fé e culturas. No entanto, a segurança do exercício desses direitos está em risco em decorrência da falta de regularização e proteção dos territórios quilombolas. O território titulado é um direito dos quilombolas, e efetivar a titulação é um dever constitucional do Estado brasileiro, que também deve promover políticas inclusivas de desenvolvimento cultural, implementando programas e planos de preservação e proteção do patrimônio e da diversidade nos territórios protegidos pelos quilombolas, cujas comunidades precisam ter participação ativa nesse processo.

 

Como citar este artigo

DIAS, Vercilene Francisco. Direitos territoriais quilombolas: coletividade e saberes que devemos proteger. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 36, 2023. Disponível em: https://itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/direitos-culturais-quilombolas-demarcacao-territorio-saberes. Acesso em: [data]

 

Vercilene Francisco Dias é quilombola do Quilombo Kalunga e advogada popular. Doutoranda em direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em direito agrário, graduada em direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e diplomada em estudo internacional em litígio estratégico em direito indígena pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. Coautora do livro Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas (2020). Atua como assessora jurídica e coordenadora da assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).



[1] Protocolo de San Salvador, 1988, artigo 14. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/basicos/sansalvador.asp. Acesso em: 5 ago. 2023.

[2] Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 5 ago. 2023.

[3] Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948. Disponível em: https://www3.paho.org/hr-ecourse-p/assets/_pdf/Module1/Lesson2/M1_L2_24.pdf. Acesso em 5 ago. 2023.

[7] Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 5 ago. 2023.

[8] Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca. Acesso em: 5 ago. 2023.

[9] Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, 1979. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-eliminacao-de-todas-formas-de-discriminacao-contra-mulheres. Acesso em: 5 ago. 2023.

[10] Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965. Disponível em: Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial | ACNUDH (ohchr.org). Acesso em: 5 ago. 2023.

[11] Decreto no 4.887, de 20 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 5 ago. 2023.

[12] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 5 ago. 2023.

[15] Tabelas das comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/pt-br/midias/arquivos-menu-departamentos/dpa/comunidades-certificadas. Acesso em: 22 ago. 2023.

[16] Títulos expedidos às comunidades quilombolas. Disponível em: https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/Andamento_titulacao_quilombolas_22.03.2023.pdf. Acesso em: 5 ago. 2023.

[19] Carta Social das Américas. Disponível em: https://1library.org/article/a-carta-social-das-am%C3%A9ricas-csa-documentos-globais.q7wnx1oz. Acesso em: 22 ago. 2023.

[20] Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, 1978. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1978%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Ra%C3%A7a%20e%20Preconceitos%20Raciais.pdf. Acesso em: 5 ago. 2023.

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