No Dia do Escritor, uma homenagem a Clarice Lispector
Publicado em 25/07/2021
Atualizado às 19:31 de 09/12/2022
por Gilberto F. Martins
Clarice Lispector, na sua única e célebre entrevista registrada em vídeo – concedida a Júlio Lerner, em 1977, para a TV Cultura –, sintetiza em uma frase a radicalidade com que se entrega ao seu ofício e vocação: “Eu acho que enquanto eu não escrevo estou morta”. E a experiência por que é atravessada aparece, matizada em graus e tons diversos, em alguns escritos de fundo autobiográfico, ou como travessia comum de personagens e narradores(as) que criou.
Useira e vezeira do pensamento complexo expresso de forma simples, Clarice afirmou em crônica no Jornal do Brasil (de 1968) que escrever “é uma maldição, mas uma maldição que salva”; e confessou não poucas vezes sentir “saudade da dor de escrever livros”. Afinal, para quem, desde sempre, reconheceu em si a premente vontade de pertencer, figurada como insaciável fome de se dar a algo ou a alguém, ser escritora parecia corresponder – ainda que ilusoriamente – à satisfação do desejo de preenchimento de uma Falta constitutiva do humano, como modo de atender ao chamado que a convocava a dar forma a vazios, sem a opção de desertar:
Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste. /.../ Embora eu tenha uma alegria: pertenço, por exemplo, a meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele tão pertencente a ponto de ser brasileira. E eu que, muito sinceramente, jamais desejei ou desejaria a popularidade /.../, sinto-me no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira por motivos que nada têm a ver com literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou uma intelectual. Feliz apenas por “fazer parte”. (“Pertencer”, em A descoberta do mundo)
No conto “Os desastres de Sofia”, do livro A legião estrangeira (1964), uma pré-adolescente rebelde e criativa, ao realizar a tarefa proposta por seu professor do curso primário – compor uma narrativa a partir de determinada situação ficcional –, descobre ser possível inscrever-se como sujeito e aludir à realidade escrevendo, usando suas “próprias palavras”, a criar e “tirar a moral das histórias”, para finalmente concluir que seria o ócio criativo, “mais que o trabalho”, o que lhe traria no futuro outras “grandes recompensas gratuitas”, as únicas a que aspirava: “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só: meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar /.../.”
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Por sua vez, Martim, protagonista adulto do romance A maçã no escuro – cuja primeira edição completa 60 anos em 2021 –, vê a afirmação da menina de que “escrever era simples” impor-se adversamente como desafio, bloqueio e impedimento, prova de inabilidade e motivo de frustração. No depósito de uma fazenda, confrontado com o papel em branco no qual pretendia “pôr ordem nos pensamentos e resumir os resultados a que chegara” com “o ato” inaugural e libertário que praticara dias antes, penosamente compreende:
Ele não sabia que para escrever era preciso começar por se abster da força e apresentar-se à tarefa como quem nada quer. /.../ o homem parecia ter desapontadamente perdido o sentido do que queria anotar, /.../ com um respeito inesperado pela palavra escrita. /.../ E em torno dele soprava o vazio em que um homem se encontra quando vai criar. /.../. Assim, pois, sentado, quieto, Martim falhara. O papel estava branco. As sobrancelhas franzidas, atentas.
Porém, Clarice Lispector não idealizava romanticamente, tampouco encarava como privilégio de iniciados o trabalho de re(a)presentar o mundo por meio da palavra escrita. E lhe reconhecia a função social – ainda que pauperizada e posta em xeque naqueles (e nestes) tempos de “estado de emergência e de calamidade pública” –, dando-lhe chão histórico, aterrando-a no Rio de Janeiro em seu livro derradeiro, na voz de Rodrigo S. M., de A hora da estrela (1977), narrador-disfarce que reconhece seu (não)lugar na sociedade de consumo e espetáculo, com certa inclinação à má consciência: “Antecedentes meu do escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. /.../ Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”. Quando a migrante Macabéa, sua difícil criatura, morre, atravessada pela “cidade toda feita contra ela”, assim também ele sai de cena:
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos.
A fortuna crítica produzida sobre a obra da autora, nascida em 1920 na Ucrânia e naturalizada brasileira, reafirma sua pertença e destaque na literatura nacional: é quantitativamente das mais amplas, muito diversificada nos enfoques teórico-metodológicos e de alcance exegético fecundo e expressivo. Como parte dela, no dia em que se homenageiam os/as artistas da palavra, profissionais da escrita, vale mencionar outros tecelões e fiandeiras, colegas de ofício que em Clarice assumidamente se inspiraram para criar novos sentidos, pelos tantos dispositivos da prática intertextual.
A musa inquietante
A morte da escritora, em 9 de dezembro de 1977, parece ter ocasionado tamanho impacto entre seus pares que os integrantes da laicíssima trindade da poesia brasileira precisaram reagir produzindo textos que abordassem o tema. No calor da hora, o maranhense Ferreira Gullar compôs um poema, depois publicado em Na vertigem do dia. O relato objetivo com o qual registra sua ausência no funeral da amiga se mescla a reflexão metafísica, condensada na imagem do fulgor que insiste em permanecer ainda que sob soterramento e na conclusão de que sujeito e mundo padecem de uma incorrigível descontinuidade:
“Morte de Clarice Lispector”
Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós
Já o mineiro Carlos Drummond de Andrade escreve o mais longo e complexo deles, no qual Clarice surge e parte como aparição misteriosa, em instantâneos e retratos sempre parciais, os quais não dão conta de enquadrar a singularidade de sua personalidade e de seu rico imaginário povoado de anjos e baratas, estepes e pontes, nuvens oníricas e potências abissais. Eis um trecho de “Visão de Clarice Lispector”, do livro Discurso de primavera:
O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
/.../
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.
O pernambucano João Cabral de Melo Neto, que em fevereiro de 1957 enviara de Sevilha uma carta à amiga afirmando que ela escrevia “a única prosa de autor brasileiro atual que [ele] gostaria de escrever”, publica quase 30 anos depois, no seu Agrestes (1985), um poema no qual recorre à habitual dicção prosaica, a fim de aparentar a perspectiva distanciada e programaticamente dessubjetivada do eu poético:
“Contam de Clarice Lispector”
Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?
E são muitas as referências a obras, autoras e autores brasileiros que propuseram um diálogo criativo com a obra lispectoriana. O volume Com Clarice reúne contos, crônicas, ensaios e memórias do casal Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti; o talento incontornável de Adélia Prado gestou um poema com título homônimo ao do aqui mencionado romance de 1961; o paraense Rudinei Borges publicou e encenou a peça teatral épico-lírica Epístola 40: carta (des)armada aos atiradores, na qual outra Macabéa ressurge vitimada por ações de despejo numa comunidade paulistana; duas coletâneas de contos – Extratextos 1, de 2012; e Feliz aniversário, Clarice, de 2020 – apresentam resultados decorrentes do desafio dos organizadores de recriar situações e personae da literatura de Lispector. Delas se destacam, por exemplo, a “Macabéa, Flor de Mulungu”, da mineira Conceição Evaristo; o “Amor reloaded”, do paulista Álvaro Cardoso Gomes; o autor baiano do romance Torto Arado, Itamar Vieira Junior, que se inspira em “A menor mulher do mundo” para escrever a narrativa por encaixe “Asa negra arrasada na areia”; “O jantar” recontado no compacto “No restaurante”, pela recentemente falecida escritora paulista Anna Maria Martins; entre tantos outros casos afins...
Os ecos desse coral prolífico continuam a ressoar, encenando de modo paradigmático o poder fecundante e emancipador da literatura e o que nela sabe a promessa de felicidade. Celebremos.
Gilberto Figueiredo Martins é graduado em letras pela Universidade de São Paulo (USP), onde concluiu o mestrado e o doutorado em literatura brasileira. Realizou estágio de pós-doutoramento na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialização em história das religiões na Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR) e direção e atuação na Escola Célia Helena (SP). É autor do livro Estátuas invisíveis – experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector (Edusp/Nankin, 2010). Desde 2006, é professor de teoria da literatura na Universidade Estadual Paulista (Unesp).