A impossibilidade de construção de uma resposta imediata (ou mesmo sintética) a questionamentos acerca da importância de Machado de Assis para a cultura brasileira se deve, desde o princípio, às dificuldades de determinar de que Machado se trata. Trata-se do ficcionista que forjou sua carreira “resistindo ao meio” e vencendo o “próprio temperamento”, no dizer do crítico Araripe Júnior – portanto, afirmando a sua singularidade contra si mesmo e o mundo em que vivia? Trata-se do Machado “grego” e embranquecido, apartado da própria condição “mulata”, para recuperar as palavras do escritor José Veríssimo e do jurista Joaquim Nabuco? Trata-se do “moleque Machadinho”, de reconhecíveis origens “mestiças” e pobres, presente nos textos biográficos da ensaísta Lúcia Miguel Pereira e do autor Monteiro Lobato – que teria, não obstante, voltado as costas à própria raça, consoante as (muito citadas, mas provavelmente jamais proferidas) palavras do jornalista José do Patrocínio? Ou se trata, enfim, do mestre derradeiramente devolvido à negritude, já por volta do seu centenário de morte, pela crítica e pela militância negra?
De fato, é possível falar sobre muitos “Machados” – em parte, devido a lacunas que persistem acerca da trajetória biográfica do escritor, sobretudo no que diz respeito aos seus anos de formação, e que tantas conjecturas têm suscitado. Todavia, importa ressaltar que a essa multiplicidade correspondem as plurais possibilidades de leitura propiciadas pela própria produção machadiana – ou seja, pela lavra legada por um escritor e crítico notório pela versatilidade, especialmente hábil no manejo de ambivalências, silêncios e entrelinhas. Assim se explica a interminável profusão de comentários, textos críticos, ensaios e estudos acadêmicos produzidos em torno das obras de Machado de Assis, desde o terceiro quartel do Oitocentos, quando o escritor ainda vivia, até a contemporaneidade; e que está seguramente destinada a perpetuar-se.
A pena machadiana foi responsável, afinal, por criar personagens que se tornariam centrais em nosso imaginário coletivo, como a Capitu dos “olhos de ressaca” – que tanto fascinou e continua a fascinar escritoras e escritores, cineastas e artistas; por produzir figuras que operam como alegorias para a nação – como o “gira” Rubião, personagem que a crítica sugeria, já no século XIX, representar o Brasil; e por elaborar narrativas que propõem persistentes questionamentos acerca do que fazemos de nós mesmos e da sociedade em que vivemos – como “O alienista” e “Teoria do medalhão”. Assim é que nós, escritoras e escritores, convivemos com Machado de Assis, conscientemente ou não; e não raramente estabelecemos um diálogo com a sua obra, ainda que nem sempre de maneira deliberada – em alguns casos, como uma forma de ostensivamente render preito ao maior nome da literatura brasileira; em outros casos, como um reconhecimento da atualidade de sua produção literária e de suas infinitas possibilidades de reinscrição no tempo presente.
A Ocupação Machado de Assis favorece a ampliação desse território de múltiplas reescrituras, oportunizando a (re)criação de – ou a reflexão sobre – personagens e narrativas por reconhecidos nomes da literatura brasileira contemporânea. Micheliny Verunschk concede voz a Quincas Borba, cão homônimo do defunto filósofo que dá título ao livro, que dialoga com o leitor “em pelo, rabo e oratória” – não se furtando a ironizar o “Humanitismo”. Esmeralda Ribeiro escreve uma carta para Marcela, personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas, questionando os limites de seu comportamento transgressor a partir de uma perspectiva interseccional. Cidinha da Silva retorna ao conto “Pai contra mãe” para propor um questionamento sobre a função de Clara, personagem “bruma” habilmente criada pelas “maquinações” do Bruxo do Cosme Velho. Ana Paula Maia cria uma Capitu que, antecipando os riscos decorrentes do ciúme, não hesita em tomar drásticas providências para eliminar as ameaças. Marco Lucchesi assume o lugar do Dr. Simão Bacamarte para produzir um texto fragmentário-aforismático que, para além do tempo, pondera sobre a razão, a política e suas fronteiras.
Nada mais propício para evidenciar a perene contemporaneidade da obra machadiana do que instigar à sua revisitação, oferecendo um vislumbre de como, para escritoras e escritores, seus textos constituem um território e um repertório sempre prolíferos. Leiamos, portanto, estas páginas com a disposição necessária para perceber o quanto a cultura brasileira é, ainda, ocupada pelo velho bruxo.
Henrique Marques Samyn é professor do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ILe/Uerj). Também vem lecionando sobre literatura de autoria negra na Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio. Como escritor, suas obras mais recentes são Levante (2020) e Uma temporada no inferno (2022).
De 18 de novembro de 2023, 11h, a 4 de fevereiro de 2024
Piso Paulista (térreo)
Itau Cultural
Concepção e realização: Itaú Cultural
Curadoria: Gerência de Curadorias e Programação Artística do Itaú Cultural
Consultoria: Hélio de Seixas Guimarães, Henrique Marques Samyn e Luciana Antonini Schoeps
Projeto expográfico: Francine Moura e Amanda Albino (assistente)
Lançamento
Coleção Todos os livros de Machado de Assis
Organizado por Hélio de Seixas Guimarães
Editora Todavia e Itaú Cultural
Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149 – próximo à estação Brigadeiro do metrô / Piso térreo
Visitação:
Terça-feira a sábado, das 11h às 20h;
domingos e feriados, das 11h às 19h.
Acesso para pessoas com deficiência física
Entrada gratuita
Mais informações:
Telefone: (11) 2168-1777
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