textos de
Lucas Bambozzi

Dizem por aí: “‘Fazer vídeo’ ficou muito fácil”. De fato, as filmadoras digitais, as câmeras compactas e os celulares que permitem gravar, editar e aplicar efeitos estão em todo lugar. O que antes custava caro ou demandava horas de rendering está acessível para muitos que jamais se interessaram em aprender o que seria uma sintaxe da imagem em movimento. Trata-se agora de um conhecimento vernacular, introjetado em processos banais da atualidade. Por um lado, isso traz uma diversidade notável para as plataformas de exibição mais instantâneas. Por outro, fica cada vez mais difícil separar o joio do trigo nessas plataformas. A produção de vídeo independente, seja na forma de vídeo experimental, curta-metragem ou videoarte, sempre ficou à margem de um mercado definido. Com o inflacionamento dessa produção, a visibilidade dela fica ainda mais comprometida, por mais que
haja mais canais.

Fazer cinema também ficou mais fácil. Será mesmo? Para quem? Enquanto o fazer vídeo ou formatos de curta duração alimenta circuitos informais de exibição, o fazer cinema passou a ser algo cada vez mais controlado – em especial pelo interesse de grandes produtores. Nos últimos dez anos, surgiram muitos

editais, mecanismos de fomento à produção, do roteiro à distribuição. Foram criadas agências reguladoras, surgiram intermediários de peso e foram definidas burocracias diversas para o uso de verbas estatais e privadas, via incentivo. Trata-se de um processo que passou do quase não existente a um negócio complexo e lucrativo, no sentido que alimenta no médio prazo uma série de produtoras (falo basicamente de CNPJs).

Fui deixando de fazer vídeos por inúmeros motivos. Como outros de minha geração, nos vimos imersos na profusão de imagens que começaram a circular no contexto pós-YouTube. Alguns negaram essa perspectiva, ignoraram os fenômenos desse contexto, outros se esparramaram pelas brechas e pelas frestas surgidas. Se antes o uso do vídeo servia a uma espécie de bandeira a ser erguida em nome de uma linguagem que procurava alguma identidade ou o devido reconhecimento, de um momento para outro surgiu uma infinidade de bandeirolas, flâmulas e estandartes, nos vimos numa feira imensa de possibilidades, e isso leva ao questionamento criativo do meio. >>

"nos vimos numa feira imensa de possibilidades, e isso leva ao questionamento criativo do meio."

Em termos pessoais, de um modo e de outro, fui me desdobrando em outros meios afins, que seguem em relação íntima com a imagem eletrônica e digital. Mas também reconheço que, de um momento para outro, por inquietações diversas, abandonei certo lugar, privilegiado talvez, como quem perde o assento e não se sente confortável nos outros lugares que encontra. Não há maiores problemas nisso. Esses lugares continuam se multiplicando e expandindo as formas de ver, e estou longe de buscar meramente o conforto, pois muito antes persigo as linguagens inquietas, os desafios da criação em situações instáveis.

Havia chegado quase por acaso à condição de documentarista. Foi relativamente fácil fazer o primeiro deles, o longa O Fim do sem Fim, junto com Cao Guimarães e Beto Magalhães. De uma ideia típica de boteco, nos inscrevemos num edital do Ministério da Cultura (MinC) com um projeto bem cuidado e fizemos o filme com 80 mil reais depois de percorrermos, em ritmo de road movie, cerca de 38 cidades em dez estados. Amadores de cinema que éramos, não nos disseram que era pouco dinheiro, e em pouco mais de três meses de edição o filme estava pronto. Mas não havia circuito possível para um longa rodado em

 

miniDV, 16 mm e super-8, com saída em Beta Digital. Assim, passamos a alimentar o mercado profissional: para colocá-lo nos cinemas, a kinescopia nos custou mais que o filme, a distribuição que veio três anos depois custou esse valor multiplicado por 3 ou 4. O segundo longa, Do Outro Lado do Rio, foi realizado igualmente no “susto”: a partir de uma espécie de residência em Oiapoque, nas fronteiras com a Guiana Francesa, fomos acompanhando quatro personagens até que a história de cada um foi sendo contada por meio de suas ações. No entanto, ter um percurso por linguagens tão diversas não garantiria um percurso pelos meios burocráticos existentes.

No caso da produção voltada para o cinema, vejo um paralelo com a cena da música, em que as formas de distribuição explodiram para todos os lados e a indústria fonográfica passou a travar uma guerra com todo e qualquer “vazador”, dos mais explícitos aos mais capilares, para não perder seus domínios de gerenciadora de direitos autorais e de mercado. Nesse vale-tudo, que muitas vezes inibe o interesse artístico, trava-se o software, restringe-se a conectividade e elimina-se o hardware aberto (quem usa produtos Apple sabe do que estou falando) para que o copyright e a aferição de lucro sejam rastreáveis e controlados.

O cinema tornou-se, assim, um reduto protegido, no qual se valorizam carreiras, pontuações e as relações com o Estado, empresas e o mercado. Quero dizer com isso o seguinte: hoje não conseguiria o mesmo acesso aos mecanismos de apoio que tivemos. O circuito se profissionalizou de forma fechada, ditada por uma lógica de pouca abertura aos fomentos existentes. A regulação privilegia o produtor de médio e grande porte, exigindo especialistas administrativos dos mais diversos tipos (e pouco do setor criativo). O sistema de pontuação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), bem como a condução de todo o processo, >>

é um engenho para bem iniciados. Os que estão à margem tendem a ser expelidos de um fluxo que cresce desproporcionalmente à medida que corre mais próximo do mar. Se toda a produção digital vem abrindo perspectivas para o alargamento da base da pirâmide produtiva, os recursos destinados ao cinema privilegiam hoje a ponta superior dessa cadeia.

No entanto, ver filmes ficou mais fácil. Para qual plataforma o cinema ficou mais fácil? Porque nem tudo aqui é reclamação. A internet passou a ser uma possibilidade de difusão nos anos 2000, com o alargamento das bandas – essa estrutura vem crescendo e causando um esgarçamento interessante nesse processo produtivo. Em termos técnicos, custamos a ver nisso uma realidade, dado o alto custo da ainda estreita conectividade no Brasil. Faz pouco mais de dez anos que a internet se tornou esse lugar amistoso para o vídeo.

A indústria investe num caminho e o usuário muitas vezes escolhe outro. Muito dinheiro foi gasto num modelo de TV digital interativo que não vai vingar. Por outro lado, a web já opera de modo razoável nas TVs

equipadas com recursos smart, e assistir a um documentário na sala de estar é uma situação que já oferece um mínimo de conforto. Afinal, a consolidação ou não de um meio como veículo de massa envolve, em relação estreita com o consumo, o desejo de conforto, de sedução e de anestesia (algo desejado por um meio hegemônico).

Assim, com a web, ganham o cinema e também o documentário. Por mais que não tendam a se consolidar como linguagem hegemônica, os formatos documentais mais elaborados podem trazer um novo tipo de percepção da realidade para muitos que tinham a TV apenas como recurso de entretenimento fácil
e acrítico.

Segundo a classificação de McLuhan de meios quentes e meios frios, este seria um processo típico de “esquentamento” de um medium. Assim como o cinema começou em seus primórdios como uma mídia fria e passou a se “aquecer” com seu desenvolvimento tecnológico, a web passa por um processo parecido, prolongando nossos sentidos de forma mais completa, cada vez em maior definição.

Nesse processo de aquecimento, não há linguagem consolidada ou que perdure. A web é formada por linguagens encapsuladas, sua navegação no estágio atual permite formas distintas de acessar o mesmo “conteúdo” (péssima palavra que incorporou em sua definição um linguajar publicitário que despreza singularidades). Já não é o mesmo papel-digital pergaminho que se desenrolava para baixo ou para os lados no estágio pré-Flash. Já não é a realidade multifacetada típica das sobreposições e dos paralelismos de um Dziga Vertov (na sugestão de Lev Manovich), já não é mais a profundidade para dentro da tela, em sua fase mais hipertextual. A ânsia de se mostrar extrapolada e interativa também não é hoje sua característica mais notável. É sim um contêiner de muitas opções, que remetem tanto para dentro como para fora dela, em objetos do mundo real anexados a números IP (fazendo valer a expressão “internet das coisas”). É hoje e cada vez mais um banco de múltiplos formatos, que abriga o documentário inclusive, que a utiliza como possibilidade de visibilidade em crescente coerência com esse ambiente mutante. >>

"Assim como o cinema começou em seus primórdios como uma mídia fria e passou a se “aquecer” com seu desenvolvimento tecnológico, a web passa por um processo parecido, prolongando nossos sentidos de forma mais completa, cada vez em maior definição."

É um lugar instável para se estar. A web supostamente não tem dono definido, enquanto a TV, em todo o mundo, tem sim donos com sobrenomes muito bem conhecidos. O vídeo, aquele informal que se potencializou no mundo pós-YouTube, tem donos dispersos, é hoje algo que realmente cresce entre as coisas, como grama entre pedras, mimetizando tudo. É um organismo complexo porém quase amorfo.

Já o cinema tem uma estrutura de guardiões. Seja contratados para tal, seja apaixonados por seu mecanismo – não exatamente pela poética dali pode surgir. O cinema está domesticado nesse sentido. Como vídeo, é livre. Quando coloca sua vestimenta de ir para a sala de cinema, torna-se cheio de donos.

Justificadamente, o cinema reluta desde o início dos anos 1980 em ter a TV como fim (vide Chambre 666, de Win Wenders). Vai relutar em ter a web como fim enquanto esta não se aproximar da nobreza da situação teatral à qual foi associado. Enquanto não se mostrar como “meio quente” o suficiente, tanto em definição como em sedução dos sentidos. Assim, o cinema busca sua manutenção a todo custo, pois a web, descentralizada, é tida como mera dispersão.

Como menciona Ivana Bentes, estamos na fase do capitalismo mental, em que as lógicas que não se enquadram no mercado são vistas como nocivas. Assim devem conviver, ainda, os defensores de uma estrutura que resiste a mudanças e os que pensam numa estrutura da qual querem confiança em termos de negócios.

Assim vencem a relutância e suas forças reativas. Porque a web é esse lugar disperso, ainda ideologicamente desprotegido, uma rede com buracos diversos por onde vazam coisas, onde o mercado se liquidifica. Seria um ótimo lugar para esses outros cinemas, que fluem por meandros e margens inesperadas, submersos em outras paisagens, ainda longe do mar, mas que anseiam por outro tipo de estrutura para sua subsistência – em maior harmonia com suas nuances, outras qualidades cinemáticas.

Parece-me, assim, sempre boa a busca de algo abaixo da superfície. Que consigamos ir descendo nessas camadas que podem ser tanto obstáculos como potencialidades a ser exploradas.


textos de
José Castello

Dois fundamentos são essenciais na arte do documentário: escutar e ver. Não atropelar a realidade, não lhe impor seus próprios pontos de vista, suas premissas ou seus preconceitos, não antecipar nem algemar – com projetos, rascunhos, roteiros – aquilo que ainda não aconteceu. Esperar. Saber esperar.
A arte do documentário é, antes de tudo, a arte da espera. Só assim, depois de esperar e esperar, o documentarista estará pronto para oferecer à grande rede um pequeno, mas precioso, pedaço do real.

Apesar da importância da pesquisa anterior, ela – se usada com desequilíbrio – pode se transformar em uma mordaça. Um instrumento que, em vez de ajudar a revelar o personagem ou a situação, os cala. A pesquisa anterior deve ser feita, mas para ser “jogada fora” no momento da ação. Para ser “esquecida”.
O melhor documentarista é aquele que chega a seu cenário com as mãos limpas e o olhar desarmado.
Que está pronto para o susto e a surpresa. Que não se abala – ao contrário, se entusiasma – quando a realidade contraria ou desmente suas premissas e suas ambições.

Observar. Antes de tudo, postar-se a um canto, permitindo assim que a realidade se desenrole livremente, sem nenhum recorte anterior, sem nenhuma hipótese prévia que, em vez de expandi-la, a asfixie. O documentarista é um observador, para quem a realidade – lugar do inesperado e do imprevisto – se oferece como objeto de decifração, e não de dominação. Diante dos fatos da vida real, a primeira postura do documentarista deve ser a de “ausentar-se”. Não interrogar (o documentarista não é um policial, que deseja levar sua vítima a falar o que ele espera ouvir). Não forçar as coisas (o documentarista não é um diretor de cena, que estabelece roteiros e limites, mas um observador silencioso, que acolhe aquilo que o real lhe oferece). Não exigir isso ou aquilo (o documentarista é alguém pronto para acolher mesmo o que o contraria, o que o aborrece ou o decepciona).

Nas entrevistas, não levar formulários prontos, listas de perguntas, questionários, “algemas mentais”. Ao contrário: depois da primeira pergunta – esta sempre um tanto arbitrária –, cabe ao entrevistador recolher as perguntas seguintes das respostas que o entrevistado lhe dá. A entrevista não como inquisição, mas >>

"O melhor documentarista é aquele que chega a seu cenário com as mãos limpas e o olhar desarmado."

como diálogo. Como troca. O entrevistador não está “acima” de seu entrevistado, não controla seus passos ou ideias, não determina o que ele diz ou deve dizer. Em vez disso: ele deve considerar que o entrevistado é um homem como ele mesmo, que ambos estão no mesmo plano, ambos estão na mesma encruzilhada e, portanto, o que se estabelece entre eles não é uma luta, mas uma aliança.

Deixar que a realidade “aconteça” e respeitar os caminhos imprevistos, ou mesmo desagradáveis, desse nascimento. O documentarista, em vez de ser um maestro que rege e dá as cartas, é um perseguidor, que segue firme a trilha do real, por mais dura e contraditória que ela possa parecer. Ele é o sujeito da ação, não só no sentido de quem a acolhe e interpreta, mas também no de quem a ela está submetido. O documentarista como servidor do real, e não seu comandante. Como “vítima” dos acontecimentos, e não como seu produtor onipotente.

Daí se esperar que um documentarista tenha um espírito livre, sempre disposto a receber impactos, a se aproximar de fatos que desconhece. Que seja alguém disposto a aprender com o real em vez de lhe impor

uma didática e uma ordem. Que seja alguém capaz de sair de si para se colocar no lugar dos personagens que constrói. Em vez do grande regente, o documentarista deve encarnar (deve experimentar “ser”) o personagem que tem à sua frente. Ele não doma o real, mas, ao contrário, a ele se oferece como objeto.

Só assim, colocando-se numa posição de acolhimento e de escuta, sem arrogância ou um saber prévio, o documentarista será capaz de se aproximar da realidade. Será capaz de, sob o recorte de um olhar – o seu olhar singular –, permitir que ela desponte e tome forma. Sim, o documentarista mantém, ainda assim, a posição de autor. A autoria não é destroçada; ao contrário, se torna mais verdadeira. Ele se torna o autor de um olhar e de uma escuta sobre a realidade – e não o suposto “autor” da realidade. Olhar e escuta que permitem que o real revele novas facetas, novos contrastes e novos mistérios.