sobre Guto

Conheça mais sobre Guto Lacaz nas palavras de Ivo Mesquita

Para o crítico e pesquisador, o humor na obra de Guto Lacaz catalisa pensamentos e reflete outras perspectivas da realidade, e o riso liga o raciocínio e libera o recalcado. Veja abaixo um trecho do texto que ele escreveu exclusivamente para o catálogo desta mostra.

“Mostraremos por conseguinte como o ridículo do elóquio nasce
dos equívocos entre palavras semelhantes para coisas diferentes
e diferentes para coisas semelhantes, da loquacidade
e da repetição, dos jogos de palavras, dos diminutivos,
dos erros de pronúncia e dos barbarismos.”
(Umberto Eco)

O artista Guto Lacaz é um cidadão muito querido, um sucesso de crítica e de público; sua produção artística é uma unanimidade. Ao longo de quase 50 anos, seu nome, quando pronunciado, é sempre seguido de um sorriso. Seus trabalhos – pinturas, desenhos, objetos, esculturas, geringonças eletrônicas, gambiarras mecânicas, textos, gráfica, instalações, performances, design – têm a empatia imediata do espectador, seja no museu, no teatro, na revista ou na galeria. Em face da diversidade de referências, materiais, formas e efeitos visuais e sonoros, seus trabalhos são sempre surpreendentes pela sua estranha familiaridade, resultado de uma disciplinada e bem-humorada observação do mundo pelo artista, transformada com engenho e precisão.

Desde meados dos anos 1970, sua produção instalou as noções de humor, ironia e nonsense como estratégias para sua prática, espicaçando o vetusto intelectualismo da arte moderna e rompendo a aridez imposta pelo conceitualismo e pelo minimalismo nos anos 1960. Trouxe leveza e alegria para a arte, ficou conhecido como um artista entre mágico e cientista, uma sorte de caricaturista do mundo e da vida quotidiana. Entretanto, antes de uma extensa comédia, sua obra é uma lição sobre como olhar o mundo criticamente e sobre o sentido libertário da experiência do riso e da arte. Para ele, a arte não é uma categoria apartada da vida.

Ao contrário do que se pode supor, o interesse de Guto Lacaz por mecânica, física e eletroeletrônica não representa, eventualmente, certa frustração do tipo “aquele que não deu certo para a coisa e foi ser artista”. Para ele, ser artista é um estar no mundo, é a escolha de encontrar na arte um território maior que aquele das ciências ditas exatas. Prefere brincar e reinventar a realidade que elas oferecem, apontar para uma outra lógica, algo disruptiva, perturbadora da ordem que elas impõem. É um espírito anarquista, um flâneur atento e curioso, um trabalhador meticuloso e determinado, um militante arguto e delicado. Acaso, intuição, sacadas, e flagrantes permeiam a vida. Sua arte é coisa de cabeça. O trabalho do artista tão importante quanto o do cientista.

Guto Lacaz é discreto e silencioso. Sempre foi. Como observou o escritor e poeta Paulo Bomfim (1926-2019), eleludicamente leva a vida a sério. Seu imaginário vai da revista Mecânica Popular ao filme O Bandido da Luz Vermelha (1968), passando por Egito, Mondrian, Beatles, Velázquez, Construtivismo Russo, Carlos Zéfiro, samba, Lygia Clark, Patricio Bisso e muito mais. O conhecimento e a difusão do seu trabalho, no início, tiveram muito de boca a boca. Entrou no circuito das artes marcando sua atitude e seu estilo no design gráfico – vinhetas, ilustrações, cartazes, tipografia, marcas – que aparecia em periódicos e revistas cult, revelando uma visualidade cosmopolita, leve e bem-humorada, contraposta ao rigor formal da tradição construtivo-concreta brasileira, da qual ele se apropria e reinventa. Da mesma forma, seus primeiros trabalhos de arte, vistos muitas vezes em coletivas de objetos e design, já traziam seus raciocínios e interpretações originais com peças lúdicas, engraçadas mesmo, a partir de objetos, produtos industrializados, aparelhos, todos deslocados das funções, transformando-os em inusitados ready-mades, como a série Coincidências industriais, a partir de 1972. Este caráter de pesquisa e muita experimentação – o método do artista – amplia-se em diversos outros objetos disparatados, como Luminária cinética (1985), Ciclo-cine (1995), Art detectors (2005), Eletrolivros (2012) e a espetacular Biciclóptica (2015), assim como em inúmeros produtos e maquetes desde então. Fantasia e imaginação na busca pelo inusitado ao redor.

Com sua primeira performance, no início dos anos 1980, Guto Lacaz ganhou figura, apareceu para o público. Naquele tempo, a performance vinha conquistando espaço nas práticas artísticas, mas ainda era percebida, entre críticos e curadores, como um exercício mais próximo do teatro, da música e da dança, num movimento de aproximação entre arte e vida, com um caráter mais incidental, muitas vezes improvisado, provocativo-reativo, em artistas como Hélio Oiticica (1937-1980), José Roberto Aguilar (1941) e Ivald Granato (1949-2016).

A Eletroperformance (1983), de Guto Lacaz, contrapunha outro modo de fazer performance naquele momento. A racionalidade era a marca do trabalho, chamado na época de “espetáculo conceitual”, e que colocava em questão o consumo, a tecnologia e o modo de vida contemporâneo, além do próprio processo teatral. Em uma série de 14 quadros com diferentes utensílios domésticos, aparatos elétricos e mecânicos, a ação resultava de um planejamento e controle rígidos, um desenho preciso do espaço, cada adereço com hora e lugar, e os movimentos dos performers rigorosamente ensaiados. Não agiam como atores, mas como instrutores das possibilidades de toda a parafernália no palco, onde cada efeito estava milimetricamente calculado. Um território multidisciplinar – teatro, ciência, música, design, artes visuais, cinema – sobre aparelhos e ações banais no quotidiano, uma sequência sem fio narrativo ou emoção, com ações inusitadas e incongruentes. O reconhecimento do trabalho levou o artista para a 18ª Bienal de São Paulo (1985), com uma sala individual. Estava consagrado.

A exposição Ideias modernas, de 1982, primeira individual de Guto Lacaz, pode ser considerada também sua primeira instalação. Ao redor da cama com travesseiro e cobertas e do tapete colocados no centro da galeria, o artista apresentava o trabalho em relação direta com sua intimidade, seu quotidiano. Recuperava o sentido do espaço original, uma casa, transformado em galeria de arte por uma impositiva arquitetura. Foi povoando-a de prateleiras com objetos, desenhos, maquetes, pequenas e grandes pinturas, esculturas, mobiliário ou quase, sem nenhuma hierarquia. A descontração produzida pelas obras – exalavam liberdade – estendia-se ao ambiente, onde a surpresa e o riso corriam soltos. Para além do encantamento de cada peça individualmente, era também notável como a domesticidade trazida ao espaço pelos trabalhos confrontava, com bom humor, a suposta neutralidade e a expectativa de sobriedade do cubo branco, assim como a superioridade erudita do evento. Propunha brincar, rir das distinções artísticas. 

Ao longo de sua carreira, Guto Lacaz realizou diversas instalações, projetos ambiciosos e desafiantes, com trabalhos memoráveis, momentos espetaculares. A primeira a arrebatar multidões foi Eletro esfero espaço (1987). Consistia em um longo corredor com, de cada lado, 12 aspiradores de pó revertidos, ou seja, em vez de aspirar, sopravam e mantinham flutuando bolinhas de isopor, enquanto o visitante, com fones de ouvido, cruzava o espaço ao som da música exuberante de Richard Wagner (1813-1883). Propunha uma imersão surreal, uma epifania operística.  

É nas instalações que Guto Lacaz revela o melhor da sua engenhosidade, do seu gosto pela apropriação e transformação dos objetos, das gambiarras tecnológicas e eletrônicas para obter resultados sempre surpreendentes e que falam direto à sensibilidade do público. Em Auditório para questões delicadas (1989), 25 cadeiras comuns de salão flutuavam sobre as águas do lago no Parque Ibirapuera, oferecendo aos passantes uma outra paisagem naquele lugar. A disposição simétrica das cadeiras multiplicava a elegância burocrática do design industrial, algo nunca percebido, e as fazia flutuar como num sonho. Foram meses de desenhos, trabalhos, testes de materiais e construção até lograr aquele efeito inesquecível. Mas o trabalho também tinha um sentido político, as tais questões delicadas. Foi encomendado como parte das celebrações do segundo centenário da “Declaração universal dos direitos humanos” (1789). Requerem os artistas.  

[Este texto é de uso exclusivo do catálogo do Itaú Cultural para a mostra Guto Lacaz: cheque mate; não sendo permitida a sua reprodução.]

1 de agosto a 27 de outubro de 2024
Pisos 1, -1 e -2

Concepção e realização:
Itaú Cultural
Curadoria e partido expográfico: Kiko Farkas e Rico Lins
Desenho da expografia: Daniel Winik
Projeto de acessibilidade: Itaú Cultural

Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149 – próximo à estação Brigadeiro do metrô.

Visitação:
Terça-feira a sábado, das 11h às 20h;
domingos e feriados, das 11h às 19h.
Acesso para pessoas com deficiência física.
Entrada gratuita.
Classificação livre.

Estacionamento:
Entrada pela Rua Leôncio de Carvalho, 108.
Com manobrista e seguro, gratuito para bicicletas.

Mais informações:
Telefone: (11) 2168-1777
WhatsApp: (11) 96383-1663
E-mail: atendimento@itaucultural.org.br
Site: www.itaucultural.org.br

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