O desafio que tenho pela frente é resumir a história de meu avô, Mario Pedrosa em poucas linhas. Um homem singular, mas de interesses plurais. Ligado afetivamente às coisas de sua terra, mas com uma curiosidade intelectual que não se restringia às fronteiras convencionais. Um internacionalista que lutou em várias frentes, políticas e culturais, e que fez amigos por todos os países por onde passou.
Meu avô nasceu em 25 de abril de 1900, num começo de século em um mundo que se transformava numa velocidade nunca vista. Pode-se dizer que nasceu nos escombros de um passado colonial e na construção arquetípica deste passado; um engenho de cana no estado de Pernambuco. Seu pai, Pedro, um advogado e político da República Velha, havia nascido sob o signo da pobreza. Sua mãe, Antonia, era prima de seu pai, mas de um ramo mais abastado da família. Mario viveu a infância entre o engenho e a capital da Paraíba. Estudou em colégios católicos e, por demonstrar um comportamento irrequieto, foi mandado à Bélgica aos 13 anos, para estudar em colégio jesuíta. A intenção era a de discipliná-lo, mas a Primeira Guerra Mundial o impede de ir ao destino combinado e a solução é ir para a Suíça, onde o matriculam num instituto de orientação protestante. Este é um exemplo das mudanças de rumo que acabarão por desviar Mario do percurso natural ao que parecia estar destinado.
À sua volta da Europa ao dezesseis anos, Mario vai para o Rio de Janeiro onde seu pai ocupava o cargo de senador pela Paraíba. Com a experiência adquirida, seu temperamento irrequieto, em vez de mitigado, se acentua, e, antes do ingresso na faculdade, ele frequenta os ambientes modernos da cidade, seja os cafés, as tabernas ou as galerias do Theatro Municipal. Sua grande paixão daqueles tempos é a música, e entre seus colegas estão o escritor Murilo Mendes e os pintores Di Cavalcanti e Ismael Nery, entre outros. Aos dezoito, ingressa na faculdade de direito e começa a se interessar pelas questões sociais e pelo marxismo. Em torno do professor Castro Rebello se junta a um grupo do qual faz parte o jornalista Livio Xavier, que será um interlocutor constante e amigo de toda a vida. É Livio que o leva à casa de Arinda Houston, onde se reúne a nata dos compositores e músicos modernos como Heitor Villa Lobos, Heckel Tavares e uma das filhas de Arinda, Elsie Houston, cantora e pesquisadora que será uma ligação importante entre Mario e círculos intelectuais e artísticos europeus. Uma das irmãs de Elsie era a Mary, minha avó.
O espírito moderno que reinava naqueles anos era fértil em ideias e libertário quanto ao comportamento. Aqueles jovens estavam empenhados na construção de um novo país, de um novo idioma escrito e de novas formas musicais ou plásticas, que rompessem com o academicismo e uma submissão aos ideais neoclássicos europeus. Ainda que pareça uma contradição, a fórmula da ruptura vinha da mesma Europa, onde artistas e intelectuais descobriam a arte e a cultura de povos dos quatro continentes, o que transformou a pintura, a escultura e a música que faziam, e com isso o olhar sobre a realidade. Ao mesmo tempo a necessidade de transformar esta realidade despertava o desejo de revolução e da busca de utopias. É este sentimento que leva Mario a entrar em 1925 no Partido Comunista, que havia sido fundado no Brasil apenas três anos antes.
Nos anos seguintes Mario se mudaria para São Paulo e se dedicaria à militância e a trabalhar no jornal Diário da noite fazendo resenhas literárias. É ali que se torna próximo do escritor Mario de Andrade. Volta também à Paraíba e colabora com o jornal A União. Em 1927 aumenta a repressão ao comunismo e o partido decide enviá-lo a estudar na Escola Leninista de Moscou.
Quando chega a Berlim, Mario adoece. Impedido de seguir para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), passa a atuar no partido comunista alemão e entra em contato com as teses da Oposição de Esquerda – organização liderada pelo revolucionário Leon Trótski que propunha caminhos divergentes ao da URSS para o comunismo internacional. Suas divergências com os rumos do comunismo, já manifestas em cartas a Livio Xavier, faz com que decida por não seguir para Moscou. Permanece então nos dois anos seguintes entre Berlim e Paris. Na capital francesa comparece ao casamento de Elsie Houston com o poeta Benjamin Peret e por meio dele conhece o grupo surrealista, tornando-se amigo de André Breton, Yves Tanguy e outros.
Nestes anos finais da década de 1920 Mario escreve artigos sobre Villa Lobos, Mario de Andrade, muitos outros de cunho político e, junto com Livio Xavier, um ensaio que será considerado a primeira análise marxista da formação social do país, o Esboço de análise da situação brasileira.
A volta ao Brasil é nas vésperas da chamada Revolução de 30, pela qual Getúlio Vargas ascendeu ao poder, e os anos seguintes serão de intensa militância junto a sindicatos. Mario e seu grupo são expulsos do PC e criam a primeira formação trotskista do país. Com o crescimento do integralismo, movimento inspirado no fascismo, Mario se engaja na criação da Frente Única Antifascista (FUA) e dirige o jornal do grupo, O homem livre. Nele, publica textos diversos, tratando de cinema e de política. É nesse espaço que publica o que é considerado sua estreia na crítica de arte: As tendências sociais da Arte de Kathe Kollwitz, de 1934. A FUA participa de um confronto direto com os integralistas nas ruas de São Paulo, no episódio que se conhece como a Batalha da Praça da Sé, quando Mario é baleado.
Durante estes anos ocorrem as primeiras prisões de Mario e Mary, que a esta altura moravam e militavam juntos. Em 1936 nasce a única filha do casal, Vera, minha mãe. Nos anos seguintes, a repressão aumenta brutalmente, levando meu avô a viver na clandestinidade. Após a imposição da ditadura do Estado Novo, a situação fica inviável. Mario vai à França para o congresso de fundação da IV Internacional, organização que congrega os movimentos trotskistas de várias partes do mundo. Chega em Paris no dia seguinte do assassinato de Leon Sedov, filho de Trotsky, por parte de agentes estalinistas. No Brasil, minha avó Mary é presa e passará os próximos sete meses na casa de detenção, junto com outras presas políticas do Estado Novo, como a escritora e militante Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, e a psiquiatra Nise da Silveira.
É um período de grande sofrimento para a família. Por fim, minha avó é solta com a condição de que deixe o país. Ela e minha mãe seguem de navio para os Estados Unidos, onde meu avô já se encontrava, junto com a direção da IV Internacional, que havia deixado Paris diante do avanço das tropas nazistas.
Os próximos sete anos serão de exílio e dificuldades, enquanto o mundo enfrenta os horrores da Segunda Guerra Mundial. O exílio de meus avós e minha mãe marcará suas vidas. No seio do movimento trotskista há divergências e após um embate com o próprio Trotsky, meu avô é afastado da direção da IV Internacional. Ainda na tentativa de fazer valer as teses que defendia, ele empreende uma volta por terra ao Brasil, percorrendo diversos países sul-americanos, em encontros com líderes trotskistas, mas assim que chega ao Brasil é mais uma vez preso e de novo deportado.
De volta aos Estados Unidos, Mario começa a escrever artigos sobre arte e colabora com diversas publicações. Conhece o escultor americano Alexander Calder, de quem se torna amigo. Convivendo com intelectuais e artistas, muitos deles fugidos do nazismo na Europa, Mario se dedica também a aprofundar os estudos de filosofia, história e psicologia da arte que informalmente havia iniciado na Universidade de Berlim no fim da década de 1920. A família mora um tempo em Nova York, outro em Washington.
Elsie Houston, também radicada nos Estados Unidos, realiza recitais em lugares como Le Ruban Bleu ou Rainbow Room, frequentados por artistas e músicos da vanguarda nova-iorquina. Elsie se suicidaria no ano de 1943 e este fato, além de ter sido profundamente sofrido para meus avôs, parece encerrar uma época, marcada por utopias, revoluções e a luta pela construção de um mundo mais justo. Elsie que havia sido considerada uma das mais importantes cantoras e musicistas brasileiras das décadas de 1920 e 1930 acabaria esquecida pela história, mas a força de sua obra e personalidade permite crer que ainda há de ser recuperada a sua memória.
A guerra acaba e se promove uma anistia política que permitirá a volta da família ao Brasil. Começa então um período em que Mario se dedica plenamente a dois projetos. De um lado, colabora na criação dos Museus de Arte Moderna (MAM) do Rio e de São Paulo e, paralelamente, se engaja na formação de uma nova via política de esquerda, que resultará na fundação do Partido Socialista. Cria e dirige também o semanário Vanguarda socialista, que será importante na formação de uma geração de intelectuais brasileiros. No campo das artes cria a coluna de artes plásticas do Correio da manhã.
A segunda metade da década de 1940 será para Mario a consolidação de sua atuação como crítico de arte. Sua defesa da arte abstrata e concreta será importante para o desenvolvimento e reconhecimento de artistas e movimentos, que hoje são considerados como a mais importante contribuição brasileira ao cenário internacional das artes. Ao mesmo tempo escreve ensaios, teses e faz conferências sobre vários temas. Algumas delas dedicadas ao reconhecimento da importância de trabalhos como o de Nise da Silveira e do artista visual Almir Mavignier à frente do ateliê de artes do Centro Nacional Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio, assim como o esforço de ampliação do papel do museu por meio dos cursos para crianças do também artista visual Ivan Serpa.
Como membro fundador da Associação Internacional de Críticos de Arte, atua também no cenário internacional e participa da organização de algumas das mais importantes edições da Bienal de São Paulo. Sua interlocução constante e franca com artistas e intelectuais acaba por transformar seu apartamento em Ipanema, no Rio de Janeiro em um ponto de encontro e reuniões. Os diferentes grupos se revezam em discussões e debates acalorados. Seus artigos estimulam a experimentação, mas também o estudo de autores até então pouco conhecidos pelos leitores brasileiros. Sua atuação promove uma interação maior de artistas e intelectuais brasileiros no cenário mundial e de seus congêneres estrangeiros no país.
A efervescência cultural do Brasil no fim da década de 1950 e começo dos 1960 seria, como ocorre ciclicamente, interrompida pelo golpe civil e militar de 1964. Após o golpe, Mario se dedica a escrever um ensaio extenso, que acabaria sendo publicado em dois livros separados; A opção brasileira e A opção imperialista. Densa obra política que merece ser revisitada, tendo em vista que ainda não superamos as ocorrências cíclicas de golpes que impedem nosso crescimento e um desenvolvimento independente.
Não demorou para que o golpe redundasse na perseguição ao pensamento de esquerda e à liberdade política. Mais uma vez meu avô é processado e obrigado a deixar o país. Desta vez seu exílio começa no Chile, onde atua na criação de um museu que se tornará o Museo de la Solidaridad. Em 1973 o golpe do general Augusto Pinochet obriga meu avô a se esconder e a buscar asilo na embaixada do México. Aos 73 anos e com a saúde um tanto abalada, Mario enfrenta outro périplo até chegar a Paris onde permanecerá até a anistia política de 1977.
Ao voltar ao Brasil Mario terá dois motivos para continuar sua luta tanto no campo político quanto no campo cultural. A criação do Partido dos Trabalhadores, ao qual se dedicou com entusiasmo e renovadas esperanças e a preparação de uma grande exposição sobre arte indígena, concebida conjuntamente com a artista visual Lygia Pape para o MAM do Rio. Já há algum tempo meu avô sentia o esgotamento do ciclo da arte moderna e acreditava que a reflexão sobre os povos originários nos mostraria como encontrar um caminho próprio, independente. O incêndio do MAM em 1978, nas vésperas da exposição, impediu sua realização. Mario se junta então aos esforços de reconstrução e propõe a criação dos Museus das Origens, ideia que ainda hoje tem o poder de revolucionar as estruturas de nossas instituições culturais.
Mario e Mary, de volta ao apartamento de Ipanema, continuaram a receber amigos para conversas sobre assuntos variados. Ele continuou até o fim da vida dedicado às leituras e textos. Ela finalizou um trabalho de vinte anos sobre o livro de James Joyce, Finnegans Wake. Meu avô morreu em outubro de 1981 no Rio. Minha avó Mary, em 1984 em Paris.
A admiração e afetividade em torno de seu nome cresce a cada dia e toda vez que alguém tem a oportunidade de conhecer sua vida e obra.
[A publicação poderá ser acessada a partir da abertura da Ocupação Mario Pedrosa, no dia 25, pelo link http://itaucultural.org.br/ocupacao/mario-pedrosa]
Quito Pedrosa é compositor, saxofonista e violonista e desenvolve trabalhos em artes plásticas, fotografia e poesia. Organizou as cronologias sobre seu avô para as publicações Mario Pedrosa Primary Documents, editada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) e De la naturaleza afectiva de la forma, do Museu Nacional Centro de Artes Reina Sofia, de Madri, na Espanha. Colabora com diversas iniciativas em torno do legado de Mario.
25 de outubro de 2023 a 18 de fevereiro de 2024
Concepção e realização: Itaú Cultural
Curadoria: Equipe Itaú Cultural (Núcleo de Artes Visuais e de Acervos e Núcleo Enciclopédia e de Memória) e Marcos Augusto Gonçalves
Consultoria: Quito Pedrosa
Projeto expográfico: Francine Moura e Davi Brischi
Visitação: de terça-feira a sábado, das 11h às 20h;
domingos e feriados, das 11h às 19h.
Acesso para pessoas com deficiência física
Entrada gratuita
Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149 – próximo à estação Brigadeiro do metrô / Piso térreo
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