Mario Pedrosa nos desafia. Por que nos desafia? Por ter se transformado numa referência para pensarmos estética e política; e, mais do que o pensamento sobre estética e política, ele nos ofereceu o pensamento da radicalidade do real. Mas por que isso seria um desafio? Porque, graças as suas convicções, ele nunca permitiu que seu pensamento se cristalizasse e se transformasse em algo dogmático; ao contrário, produziu um pensamento em aberto, colocou-se no lugar da hiância – isto é, entre o intervalo do que não existia ainda e o que estava prestes a existir –, sempre atento à realidade, sem nunca deixar de levá-la em consideração; a radicalidade do real foi seu leme. Hoje, somos surpreendidos pelo que percebeu, indicou e deixou em aberto, para que fosse preenchido pelo acontecimento. O desafio está em como manter a mesma lucidez de análise, a maneira atenta, generosa e sem concessões ou preconceitos de ver a arte e a vida. O desafio está em como manter a radicalidade do real.
Podemos arriscar um roteiro – lembrando sempre o quanto são limitados e circunstanciais. Seu pensamento se sustenta em três pilares: o marxismo, a Gestalt e a arte moderna. Evitou os cânones pasteurizados desses pensamentos e se colocou na radicalidade de seus fundamentos; daí suas convicções. Dessa maneira produziu com o pensamento de um, o deslocamento do eixo do outro.
Segundo o jornalista Edmundo Moniz, seu amigo da vida toda, escreveu em A personalidade de Mario Pedrosa, publicado no catálogo Mario Pedrosa, arte, revolução, reflexão, a teoria marxista forneceu “o fio condutor de sua obra (que) é sempre o da revolução que deve substituir o mundo capitalista pelo mundo socialista. O político e o crítico de arte têm a mesma finalidade, o mesmo intento de provocar as profundas renovações que a história exige e determinará de maneira inevitável”.
Mario Pedrosa, era um revolucionário, e tanto o marxismo quanto a arte moderna representavam, para ele, uma revolução espiritual. Deixemos os clichês de lado, não precisamos repetir que não era panfletário, mas é importante esclarecer e estabelecer uma diferença: não era panfletário em arte porque, para ele, o que se estava vivendo na primeira metade do século XX era uma revolução espiritual da maior importância, que traria para a superfície da realidade da vida o compromisso com a liberdade, o novo e a construção de uma sociedade mais justa e generosa. A arte moderna encaixa-se nesse projeto por dar expressão a uma outra sensibilidade, capaz de reinventar a forma e propor uma nova maneira de expressar a liberdade e ver a realidade.
A arte moderna rompeu com os cânones da perspectiva central naturalista clássica, pondo em questão as Belas Artes e cinco séculos de domínio da ideia de representação por verossimilhança da realidade externa, inaugurado pela Renascença. A extensão desse fato vai além das conquistas técnicas e Mario Pedrosa destaca, no seu texto Panorama da Pintura Moderna – publicado na coletânea Arte. Ensaios críticos – que a revolução é sobretudo de ordem espiritual. Vejam a atualidade de seu pensamento, ao escrever sobre o pintor Paul Gauguin:
“(...) essa aproximação não é só técnica, mas sobretudo de ordem espiritual, sendo ele (Gauguin) talvez o primeiro grande europeu para quem a arte dos povos exóticos, primários não é mera curiosidade, mas tão criadora quanto a dele, regida por uma necessidade plástica e espiritual tão autêntica e alta quanto a ocidental. Aliás, diga-se logo, de passagem que Gauguin revela nessa atitude uma das características mais profundas e permanentes de sua e, nesse sentido, igualmente de nossa época: o contato espiritual direto pela primeira vez na história humana de todas as culturas, passadas e presentes, pré-históricas ou contemporâneas, no tempo e no espaço. As consequências dessa interpenetração de culturas, ainda não acabaram de revelar-se em todo o seu desenvolvimento. Não se pode, entretanto, compreender a arte moderna sem o fato bem presente no espírito.”
Ao destacar que uma das grandes contribuições desse momento foi que as diferentes culturas visuais têm as mesmas necessidades plásticas e espirituais que a arte ocidental, Pedrosa revela a extensão da quebra de um paradigma eurocêntrico e a importância de criar espaço para as diferentes manifestações expressivas; para a manifestação do outro. Mas não só das diferenças expressivas entre culturas distintas, mas entre diferentes indivíduos de uma mesma sociedade.
O texto completo e a publicação poderão ser acessados a partir da abertura da Ocupação Mario Pedrosa, no dia 25, pelo link http://itaucultural.org.br/ocupacao/mario-pedrosa]
Marcio Doctors é mestre em estética pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). É curador na Casa Museu Eva Klabin, para a qual desenvolve o projeto Respiração. Também atua como curador independente. No final dos anos 1970, foi secretário de Mario Pedrosa; nos anos 1980, compôs o coletivo de artistas A Moreninha. Tem artigos publicados no Brasil e no exterior.
25 de outubro de 2023 a 18 de fevereiro de 2024
Concepção e realização: Itaú Cultural
Curadoria: Equipe Itaú Cultural (Núcleo de Artes Visuais e de Acervos e Núcleo Enciclopédia e de Memória) e Marcos Augusto Gonçalves
Consultoria: Quito Pedrosa
Projeto expográfico: Francine Moura e Davi Brischi
Visitação: de terça-feira a sábado, das 11h às 20h;
domingos e feriados, das 11h às 19h.
Acesso para pessoas com deficiência física
Entrada gratuita
Itaú Cultural
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